29 de abril de 2012

Semana 18
Três coisas impossíveis


























Desde pequena que Dina era grande. Aliás, Dicki. Dina era o nome da irmã mais velha. Mas o homem que tratou do passaporte fez confusão. Foi lá a casa receber dinheiro, para ir pedir a papelada e pagar os subornos. Como Dicki era a mais alta, ele pensou que ela era Dina, a filha mais velha. Pediu o visto em nome da Dina.
Quando a família se apercebeu do erro, era tarde. Dicki apresentou-se na fronteira como sendo Dina Ndembo.
Dicki nasceu em 1970, no Zaire, para onde os pais tinham fugido da guerra da independência em Angola. Sempre quis estudar Direito, mas não conseguiu, nem em Kinshasa nem em Luanda, onde, por causa da guerra civil, a universidade estava fechada. Por isso veio para Portugal, sozinha, em 1992. O objectivo era tirar o curso na Bélgica. Mas o tio, para casa de quem veio viver, não permitiu. Queria educá-la à moda antiga: não a deixava sair, batia-lhe.
Para se libertar, Dicki agora chamada Dina e com mais dois anos (fictícios) do BI, e 1m 86 (reais) de altura, foi trabalhar nas limpezas, no Prior velho. Começou a frequentar a igreja pentecostal e lá reencontrou um velho conhecido de Angola. Trabalhava nas obras e ajudava o pastor da Igreja. Era um homem baixinho, de quem ela nunca gostara. Mas como não tinha cá muitas amizades, aceitou a dele. Tornaram-se até confidentes. Ela contou-lhe coisas íntimas que nunca revelaria se soubesse o que ia acontecer: ele pediu-lhe namoro. Dina respondeu logo que não.
“É por eu ser baixinho?”, perguntou ele.
“Sim. Estás a ver como sabes a razão?”. Mais tarde, por pena, Dina aceitou. Mais tarde ainda, não sabe porquê, apaixonou-se de verdade.
Casaram e Dina foi fazer um curso de cabeleireiro. No fim, encontrou emprego na Póvoa de Santo Adrião. Entrava às 10 da manhã, saía às 10 da noite.
Era tão explorada que decidiu trabalhar sozinha. Comprou algum equipamento produtos de cabeleireiro, recebia em casa os clientes, que passavam palavra sobre a boa qualidade do serviço, e acorriam em número cada vez maior.
Dina especializou-se em cabelos africanos. Considerava o seu trabalho uma arte, inventava penteados consoante a personalidade da cliente.
Um dia, a Assembleia de Deus, a sua Igreja, lançou uma campanha com o título “Pedir a Deus três coisas impossíveis”. Dina pediu, número 1, que o marido se tornasse pastor na igreja; número 2, para abrir um salão de cabeleireiro; número 3, para ser missionária no Sudão.
Dias depois, estava a ler a Bíblia, quando teve uma premonição. Ligou a SIC. Estavam a falar do micro crédito. Informou-se. Fez um projecto de negócio e recebe 5000 euros. Em Fevereiro de 2005, arrendou um salão em Sacavém e começou a fazer publicidade, em panfletos que distribuía nas feiras e nos autocarros. A clientela aumentou e, no ano passado, mudou-se para um salão maior.
O marido é hoje pastor da Assembleia de Deus. Dina quer, dentro de alguns anos deixar o salão a um gerente e, com o marido e os filhos, partir para o Sudão.

Paulo Moura
história publicada em “Retratos: Dez anos de micro-crédito em Portugal”, ANDC, 2009

Valter Vinagre
fotografia publicada em “Retratos: Dez anos de micro-crédito em Portugal”, ANDC, 2009

22 de abril de 2012

Semana 17
Aristides, um “sempre-em-pé” que dá vida
e trabalho a cidadãos deficientes


Caminha como o “sempre-em-pé”, é manco ou “marreco”, como diz às crianças que o visitam. Elas riem, ele também. Os constrangimentos passam. Aristides Santos é um homem que emprega os da sua “raça”. Paralisia cerebral, amputados, esclerose múltipla, cegos. “Um autêntico supermercado”, graceja. Será que se pode brincar assim? Pode. Aristides faz jus à expressão “Coitadinho é corno”, aquela que usa quando lê pena nos olhos dos outros. Nos seus, há brilho. Afinal, este puto reguila de 47 anos, que anda a cavalo sem estribos, ouve nas vozes dos vizinhos: “Quero ser como o Aristides”.
Um martelo, uma mesa, três pessoas. Assim nasceu em Santa Maria da Feira, há 15 anos, a Deficiprodut, empresa de artigos feitos em pele por cidadãos deficientes. Hoje são mais de 60. “Ela vem para aqui e eu ensino-a a trabalhar. Sabe que sou de ideias fixas. Até logo”. Aristides desliga o telefone. Sim, ele é de ideias fixas. A poliomielite aos três meses e os ferros que lhe suportam as pernas nunca o fizeram parar. “Fui criado no meio dos ‘índios’, era igual a eles, se andavam a cavalo, eu andava a cavalo, se nadavam, eu nadava”, conta. Estudou contabilidade, montou um escritório. Sem clientes. Correu o Norte à procura deles. “Olhavam-me com pena, não como profissional. Ai é? Vou mostrar que sou bom”. Mostrou. Mas este “sempre-em-pé” tinha um sonho. Dar qualidade de vida a pessoas como ele. Fazer dos “mancos e marrecos” verdadeiros homens. “Aqui, ninguém está preocupado se é amputado ou surdo. Querem ganhar dinheiro e trabalhar. A empresa dá lucro e paga impostos, não é um santuário”. A missão social é o direito ao trabalho. “Querer é poder. É preciso acreditar. Eu acredito”.

Lúcia Crespo
texto e foto inéditos, 2010

15 de abril de 2012

Semana 16
Cesto da Paz


No início era o cesto. A Fundação J’aime Haiti não tinha mais nada para oferecer quando deu os primeiros passes (sic) em 2006. Vinte cestos de basquetebol para instalar em bairros pobres da capital do Haiti, Porto Príncipe. Faltava o cimento para pavimentar os campos. O projecto, meio manco, foi baptizado Cesto da Paz.
“Aquilo que parecia uma infelicidade, tornou-se uma oportunidade. A comunidade juntou-se, recolheu fundos e tratou da pavimentação”, relembra Ti Gera (Pequeno Gerald). O fundador de J’aime Haiti fala de uma vitória ao primeiro tempo: “a ideia era precisamente usar o desporto para unir e criar oportunidades de desenvolvimento comunitário”.
De cesto em cesto, Ti Gera conseguiu lançar o basquete em diferentes áreas da cidade. Em 2007, nasceu o Torneio Cesto da Paz, com dez equipas e jogado em 4 bairros.
Pontos somados, e a J’aime Haiti já instalou 70 cestos, dezenas de campos e vai na terceira edição do torneio. Na última, foi também criado um concurso de rap crioulo. O vencedor conquistou a fundação e o direito a gravar um disco. Em Agosto, vai haver nova estrela de rap crioulo no mercado local.
O sucesso do Cesto da Paz chamou mais patrocinadores ao jogo e, hoje, a fundação fintou um dos maiores adversários: tem agora vários apoios, nomeadamente de uma empresa de cimento.
Dia 12 de Janeiro de 2010. No Haiti todos sabem a data de cor: terramoto de 7.0 na escala de Richter. Sem tempo para intervalo, a fundação decidiu continuar as actividades regulares. Instalou 17 cestos e apostou numa escola destruída pelo sismo. Ergueu estruturas de metal que servem de sala de aula. Desta vez, o cimento é um material que ninguém quer ouvir falar. Na hora do recreio, a bola é lançada ao ar: é tempo de jogar basquetebol.
Apesar de rodeado de desporto, Ti Gera, 30 anos, não pode participar nas actividades físicas. Nasceu com distrofia muscular. Aos 5 anos ainda conseguia andar. Hoje, está numa cadeira de rodas, quase sem mobilidade corporal. Nada que o incomode. “Sou sortudo. Devolvo à comunidade aquilo que ganhei pessoalmente”. E não é bem verdade que não participe nas acções desportivas. Ti Gera oferece-se sempre para ser o árbitro.
Afinal, porquê J’aime Haiti? “Podía ter ido para fora. Mas há um laço que me prende aqui, um lado sentimental”, confessa. “Devo isto ao país, não posso partir”. Por outras palavras, ele aime o Haiti.

Mariana Palavra,
texto inédito, 2010

Asociação J’Aime Haiti
fotografia inédia, s.d.

8 de abril de 2012

Semana 15
Os jovens de Clichy-sous-Bois



Clichy-sous-Bois é cenário sombrio, sob a mancha cinzenta de prédios degradados, repletos de famílias numerosas, pobres, vindas de longe, com filhos que não conhecem nenhum país de origem senão a França.
A morte dos dois adolescentes, Zyad Beena, de 17 anos, e Bouna Traoré, de 15 anos, electrocutados num transformador de alta tensão quando se escondiam da polícia, ainda pesa. Nessa noite, não houve qualquer explicação da polícia, do Governo, de qualquer instituição. A mágoa tomou a forma de “revolta social” que incendiou nesse Outono de 2005 primeiro Clichy-sous-Bois, no Leste de Paris, e depois os subúrbios de várias grandes cidades da França. Clichy-sous-Bois mistura os sintomas da problemática integração de imigrantes com os da pobreza e do desemprego, cuja taxa média de 26 por cento é quase três vezes superior à média nacional.
As pessoas de Clichy vivem num enclave, sem transporte directo que as ligue à capital, sem portas de saída para novas oportunidades, cortadas do mundo que os rodeia. Esta é uma cidade jovem, onde quase metade da população tem menos de 25 anos.
As torres ergueram-se na desordem e a cidade aumentou. Um imenso espaço verde, onde um grupo de mulheres em traje muçulmano passeia, podia ter sido transformado num jardim. Mas também ele parece só estar ali por acaso, desalinhado, ao abandono. Nada nesta cidade parece ter sido pensado para acolher pessoas. É generosa para os que chegam acolhidos pelos que já aqui estão. Mas algo de impiedoso instala-se na vida dos que aqui passam a viver.
Samir Mihi é um dos fundadores da aclefeu (Association, Collectif, Liberté, Égalité, Fraternité, Ensemble, Unis) criada para que as mortes de Zyad e Bouna não tenham sido em vão. Toda a cidade os conhecia e a eles se refere como “os nossos filhos”.
“Podia ser bom viver em Clichy. Mas as pessoas foram deixadas à sua sorte aqui", conclui Samir. “As paredes têm lepra, nas casas não há água, os prédios não têm elevador”, descreve. “Depois admiram-se que as pessoas sintam ódio”.
Sofiane assume-se como porta-voz de um pequeno grupo de alunos à frente do Liceu Alfred Nobel. “Vivemos nos subúrbios, por isso não existimos. Vivemos na única cidade onde não existe nada”. Os jovens pouco saem de Clichy. Cansados dos controlos de identidade, quase nunca vão a Paris. “A polícia abusa. E é só por causa da cor que temos na pele”.

Ana Dias Cordeiro
a partir de reportagem em França para o jornal Público, em Maio de 2007

Rodrigo Saias
ilustração inédita, 2010

1 de abril de 2012

Semana 14
No Bairro de Aldoar o tema do momento
é o tema de qualquer momento: sobreviver



A palavra crise pouco dirá a quem vive em crise desde que vive? “Quem é muito pobre quer lá saber da crise!”, prega Esmeralda Mateus, presidente da Associação de Moradores do Bairro de Aldoar, na zona ocidental do Porto. A reformada diz isto e logo desdiz: “E se, com essa crise, acabam com o rendimento social de inserção [RSI]? De quê que esta gente vai viver?”.
Há muito desocupado encostado às paredes limpas do bairro. “Não arranjam trabalho”, legenda Cecília Pinto, atrás do balcão do bar associativo, contas enegrecidas pelos fiados. A filha dela está com 20 anos e não vai além de umas horitas num infantário. “Tirou o 9.º ano. Afinal, não sei para quê!”.
Uma espécie de calvário é percorrido por quem não consegue entrar no mercado de trabalho ou dele sai e esgota subsídio de desemprego e subsídio social de desemprego sem conseguir reempregar-se. O RSI pode, então, surgir como única forma de atenuar a severidade da pobreza. Esmeralda Mateus não quer que se pense que a mais polémica prestação social é alguma fartuna. “Uma pessoa sozinha recebe 187 euros e isso para que dá? Onde estão as voltas de ouro que antes se viam ao pescoço? Foram vendidas ou estão no prego! Ainda bem que a canalha, agora, tem almocinho na escola! Todas as noites há gente a vasculhar os caixotes do lixo ao pé do supermercado!”.
As notícias sobre a crise chegam pelo televisor incrustado na parede. E é como se ali estivesse a professora do Charlie Brown a pronunciar frases incompreensíveis. No Bairro de Aldoar, o tema deste momento é o tema de qualquer momento: sobreviver.

Ana Cristina Pereira
a partir da reportagem publicada no jornal Público, 1 de Maio de 2010

Adriano Miranda
foto inédita, 2010