25 de novembro de 2012

semana 48
A coragem de contar histórias


A dar as boas vindas à Casa dos Jornalistas em Paris, a associação que desde 2000 acolhe jornalistas que pedem asilo político em França, está o sorriso de Jean Jacques Jarel, repórter do Gabão. É o seu aniversário. Tem os olhos molhados de comoção: “Sou licenciado em filosofia, mas nunca dei aulas. Tinha apenas 19 anos quando me tornei jornalista e durante uma década trabalhei na imprensa escrita, na rádio e na televisão do meu país”. Depois do entusiasmo das recordações de juventude, o seu sorriso apaga-se e fala daquele telefonema: “Foge, andam à tua procura”, dizia uma voz do outro lado do auscultador. “Era de manhã, há uns meses atrás, e tinha acabado de noticiar que o nosso presidente estava doente, em recuperação num hospital em Barcelona. A vocês poderá parecer estranho, o vosso país é democrático. Mas no Gabão e em tantos outros países difundir notícias como esta leva-nos à prisão, à tortura. Para o povo, o presidente deve representar a perfeição, o ‘Deus na Terra’. Não é lícito conhecer o seu estado de saúde, os seus problemas. E se alguém tenta informar, desencadeia uma perseguição. Mas eu fi-lo para informar os meus compatriotas, porque era o meu dever. Para nós, os direitos humanos não existem, a liberdade de imprensa é apenas uma miragem. E se queres ser jornalista e não arriscar a vida, tens de acariciar a pele do poder”. O grande sonho de Jacques é viver em Paris com a sua família e continuar a ser jornalista. “Estou consciente que aqui será muito difícil, o mercado dos “media” é fechado. Assim, inicialmente, vou procurar um trabalho que me permita viver. Gostaria de voltar a estudar e tirar uma licenciatura na minha nova Pátria, porque aqui o título ‘made in Africa’ tem pouco valor”.

Vincenzo Sassu
história e fotografia inéditas, 2010

18 de novembro de 2012

semana 47
112 a duas rodas


O que move Elias e equipa?, perguntam-me…
Talvez a consciência de que ali, no interior de Caia no coração de Moçambique, a diferença entre a vida e a morte pode estar tanto no arroz “mata-fome” trazido pelo voluntário, como no curativo por ele feito ou na viagem garantida até ao médico, o único, a uns 20 ou 30 quilómetros.
Quando a dor aperta ou o corpo não aguenta o caminho difícil e esburacado, os cerca de vinte rapazes e raparigas que Elias coordena vão além da assistência domiciliária regular e gratuita a 77 doentes. É aí que colocam o paciente no atrelado, que o tapam com mantas, que o prendem com o cinto de segurança e que pedalam... Sobem para o selim da bicicleta-ambulância e pedalam contra a doença, o tempo e o isolamento.
Eles são a emergência médica, apta para todo-o-terreno. “Se não fosse assim, simplesmente, estas pessoas em sofrimento não saíam de casa”, afirma Elias. O improviso balança mas antes era pior. Até surgir a ideia, apoiada pelos Serviços Distritais de Saúde de Caia e pelo Consórcio Associações com Moçambique, os doentes “mais afortunados” seguiam para o Hospital rural de carroça ou carrinho de mão.
A maioria dos pacientes estão infectados pelo VIH e alguns fazem já tratamento antiretroviral. Estamos em Sofala, um dos corredores do continente para o Oceano, terra de passagem de camionistas e de concentração de prostitutas. Há muito que Elias lhes diz que o prazer encerra perigos, que a camisinha salva vidas, que o futuro começa ali mesmo. Se o ouvem? “Uns sim, outros nem por isso!”
Se compensa? Com oito filhos em casa e pelo menos 20 seropositivos em cada 100 habitantes nesta província que é sua, como não?

Paula Borges,
história inédita, 2010

Jorge Silva
ilustração inédita, 2010

11 de novembro de 2012

semana 46
Em Buba, uma escola feita de diálogo


“Chamo-me Alice Mariama Mané. Claro, mais conhecida por Néné. Tenho 45 anos e sou secretária executiva da organização não-governamental RA – Rede Ajuda, Cooperação e Desenvolvimento. A RA surgiu na região de Quínara, na cidade de Buba. Sabemos que a pobreza é mais notória no interior da Guiné-Bissau, recai sobretudo sobre as mulheres e as crianças, sem que o Governo tenha capacidade para apoiar essas pessoas.
Depois da independência, nunca mais nenhuma escola tinha sido construída na região de Quínara. A partir de 2002, conseguimos apoio para a construção de sete escolas. Cada escola tem cinco salas de aula: quatro para o ensino básico, uma para jardim-de-infância. Assim, aos três anos as crianças já conhecem as letras.
A ideia desta escola mista surgiu de uma visita que fiz ao Senegal. Encontrei centenas de crianças a pedir esmola na rua com latas velhas de polpa. Quando me dirigi a elas para lhes dar um pequeno apoio ouvi ‘obrigado’. Disse: ‘Meu Deus, obrigado se não é crioulo, é português’. Porque estava num país francófono, esperava ouvir francês ou wolof.
Perguntei: ‘Parece que falou obrigado. Onde estão os teus pais?’
Escutei: ‘Vim com um grupo de senhores. Os meus pais são da Guiné, mas não os conheço’. Isso despertou-me a atenção para os meninos talibé que vão para o Senegal ou para a Gâmbia estudar o Alcorão. Normalmente, essas crianças são do leste do país. Os pais sentem-se honrados em enviar os meninos para fora. Mas muitos não conseguem estudar. São obrigados por alguns mestres corânicos a apanhar lenha às cinco da manhã. Às sete já estão na rua, com uma caneca na mão, para pedir esmola.
À noite, à luz da figueira, lêem um bocadinho as tábuas. Não têm tempo para aprender. Então: eu sei fazer as orações islâmicas e sei também rezar o Pai-nosso. Fiz os meus estudos com as freiras e tenho essa parte mista. A parte mista que tenho é que me levou a perguntar: ‘Por que não uma escola que seja ao mesmo tempo madrassa e oficial?
A nossa escola, aqui em Buba, é muito procurada. Todas as crianças matriculadas na escola madrassa, no período da tarde, frequentam também o ensino oficial, na parte da manhã. Sensibilizamos também para que deixem as meninas ir para a escola. Agora já estamos com falta de salas.
Não há nenhum mistério. É possível. Eu sou exemplo vivo”.

Alice Mariana Mané, Directora da Rede Ajuda

Paulo Nuno Vicente
a partir da entrevista para o documentário “Construir o Paraíso Aqui”, ACEP, 2009
fotografia inédita, 2009

4 de novembro de 2012

semana 45
Íamos só aprender a ler


– Fui levado por eles… depois mandaram-me pedir nas ruas. Fui, mas não consegui dinheiro. Aruna só foi menino até aos seis anos; agora é talibé, de taliban.
Seguro-lhe a mão fria mas suada, a mesma que tantas vezes usou para se proteger.
– Bateram-me muito e fiquei inconsciente. Quando acordei, fugi e fui pedir ajuda.
Os olhos estão agora cravados na linha que desenhou com o pé na terra vermelha de Bafatá. É como se a vergonha fosse sua. Talvez porque ele acha tudo em nada; talvez porque eu não acho nada em tudo. E se as esperas e desejos de uma criança não se estendem para além de cinco minutos, Aruna esperou quatro anos.
São conhecidos como os “Meninos Talibés”. Crianças levadas das tabancas (aldeias da Guiné-Bissau), para estudarem nas Madrassas, as escolas corânicas, mas que acabam nas redes de tráfico. Levadas para outros países, aí são sujeitas a trabalhos forçados, à mendicidade e à exploração sexual.
Malan é um muçulmano guineense que luta contra os falsos mestres corânicos. Com a ONG que fundou, a “SOS – Crianças Talibé”, já recuperou mil e duzentas crianças. É ele quem me leva numa viagem impressionante até à aldeia de Maimuna, Ramatulai e Tulai. Têm agora entre onze e catorze anos e estiveram fechadas num quarto durante oito anos sujeitas a violações constantes. Só foram libertadas porque estão grávidas e perderam o valor comercial. O Régulo autoriza-me a entrevistá-las.
— Maimuna, não tenhas medo, conta-me o que te fizeram.
— Levaram-me com eles para o Senegal. Queria aprender a ler e a escrever. Ele perguntou-me se tinha mais alguma amiga que também quisesse estudar. Disse-lhe que sim.
— Ramatulai, o que te aconteceu lá no Senegal?
— Levaram-nos e fomos fechadas num quarto. Íamos apenas para aprender a ler…
— E tu, Tulai, o que sentes agora?
— Feliz, mas quero aprender a ler.
O desejo de Tulai é o mesmo de Ramatulai e de Maimuna, mas não serão obedecidos. As famílias fogem da vergonha e vão sujeitá-las a casamentos forçados nos próximos meses.
Estou a preparar as malas para voltar a Lisboa quando sinto que um carro pára à porta da delegação da RTP África, em Bissau, e alguém grita:
— Conseguimos! Conseguimos duas vitórias!
É o professor muçulmano que corre para mim de braços abertos.
— O Aruna encontrou a família graças à tua reportagem! Quanto às meninas, uma ONG internacional garantiu alimentação e cuidados médicos para elas até darem à luz.
Malan levanta as mãos ao céu e agradece com sonoros “Allahu akbar!”, Deus é grande.
Mais tarde quis saber o que lhes acontecera.
Aruna vive actualmente com os pais nos arredores de Bissau; Ramatulai teve uma menina; Maimuna abortou ao quinto mês e Tulai não se adaptou e fugiu para o Senegal. Talvez para evitar o casamento e aprender a ler. Ninguém mais a viu.
Actualmente há mais de cem mil crianças da África Ocidental ainda nas mãos dos traficantes.

Luís Castro
a partir de reportagem para a RTP, na Guiné-Bissau, 2008
ilustração a partir de frame da reportagem para a RTP, 2010