26 de agosto de 2012

semana 35
A dança dentro da vida


“A arte pode e deve ter uma função social. Ir ao encontro do público e, quando necessário, deslocar o trabalho artístico para espaços que aumentem as possibilidades deste encontro. Numa das cartas que troquei com a coreógrafa Idoia Zabaleta, (co-criadora da peça ‘Dueto’) reafirmo esta preocupação: ‘Se eu pudesse construir um espaço para um corpo se mover, que espaço seria este? Construir um espaço ou utilizar os que existem, colocando-os como cogumelos ou vírus em terrenos baldios, em bairros periféricos, ou ao lado de grandes teatros, parece-me ser um acto interventivo e político’ (19 Setembro de 2005). Nesta linha, tenho participado em projectos de criação artística junto de grupos em contexto prisional e, recentemente, com jovens menores, em processo de reinserção social, em centros educativos. São projectos que unem a pedagogia à criação artística e reflectem uma ligação entre a arte e a vida, promovendo a imaginação individual e o criar em grupo.
Os três projectos que mais me marcaram foram:
— ‘Rexistir’, formação e criação com reclusos do Estabelecimento Prisional de Castelo Branco. Projecto de nove anos, que conseguiu criar e apresentar vários espectáculos, dentro e fora do Estabelecimento Prisional, como ‘Nus Meios’ (2006), apresentado em Lisboa, no Teatro Camões. Construímos espaços de liberdade, de respeito e crescimento mútuo entre grupo de reclusos e todos os funcionários do Estabelecimento Prisional. Foi onde descobri a minha vontade de fazer projectos de âmbito social.
— ‘Tapete’, Projecto em Centros educativos, promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian. Esta intervenção durou três meses, durante os quais se construiu com os jovens um pequeno objecto artístico que misturou a dança, o vídeo e a música. Um dos projectos mais difíceis, em termos de criação de laços de confiança, onde aprendi muito sobre a importância da arte, para a inserção social destes jovens.
— ‘Nu Kre Bai Na Bu Onda’, projecto de formação e criação em dança, com jovens do bairro da Cova da Moura, que deu origem a ‘Íman’, peça que viajou por vários teatros em Portugal e no estrangeiro, incluindo Ramallah e Jerusalém. Conseguimos encontrar o “lugar do meio”, o lugar da negociação, da partilha, e mostrar o bairro da Cova da Moura para além das imagens violentas que aparecem na televisão e jornais. O projecto de intervenção social e cultural promovido pela associação Alkantara vai continuar, alargando-se a jovens de outros bairros da Amadora, para além da Cova da Moura. Continuarei como coordenadora artística do projecto de formação em artes do espectáculo, desenhada para que os jovens possam tornar-se eles próprios criadores ou/e dinamizadores das suas comunidades”.

Filipa Francisco

Alexandra Lucas Coelho
texto inédito, 2010

Jorge Gonçalves
espectáculo “Dueto”

19 de agosto de 2012

semana 34
Açúcar, chocolate e canela


Maria João passou leis a pente fino, atravessou fusos horários ao telefone, desbravou caminhos que a segurança social portuguesa dizia desconhecer. Depois, apanhou o avião, duas vezes. Agora, dá banho e mimo às filhas.
— Quem é o meu pauzinho de canela?
— Eu…
— E quem é o meu torrãozinho de açúcar?
— Eu…
— Então e eu, sou o quê?
— Tu és a Branca de Neve!
— E o que é que nós somos uma sem a outra?
— Nada.
— E o que somos uma com a outra?
— Tudo!
São doces os abraços que envolvem, nas toalhas, os corpos pequenos. Como a palavra que Lena escolheu para tornar menos amargos os dias de André. “Havia miúdos que, a brincar, diziam: tu és da cor do cocó. E eu comecei a tratá-lo por chocolate, porque é algo doce e bom”. Uma vez, passou a escrito a emoção, que não parava de crescer desde o dia em que partilhou lágrimas com o companheiro, ao verem a fotografia do miúdo, no centro de acolhimento. “Um filho chocolate nasce num coração rubro. Cresce, inquieta, desafia, enquanto tecemos as malhas dos afectos”. Maria João lembra as resistências, entre amigos e até na própria família. “Vão dizer que andaste metida com um preto! Um dia, elas vão perguntar-te por que têm uma cor diferente!”. E ela, adiante, a lembrar-se disso, mãos entrelaçadas com a mais velha: “de que cor é a tua pele?” E a menina-canela, num sorriso: “é cor de pele!”. E a mãe a acreditar no futuro, a lutar por ele na associação Meninos do Mundo. Lena não esquece a raiva que sentiu quando confundiram o filho “com um arrumador de automóveis”, quando lhe atiraram, como pedras, as palavras “vai-te lavar!”. Também recorda como a vizinha chorou de alegria, quando trouxeram André para o aconchego dos novos lençóis do Mickey; como outras mães a ajudaram, na primeira ida à piscina, com conselhos e champô. Chamaram-lhe mãe-coragem. Coragem? “As pessoas não entendem que há um dia em que deixa de ser a criança adoptada e já é o nosso filho. E não há maior coragem do que uma mãe que decide ter um filho”.

João Paulo Baltazar
a partir da reportagem em Portugal para a TSF, “O meu filho chocolate”, em Novembro de 2007

Paulo Buchinho
ilustração inédita, 2010

12 de agosto de 2012

semana 33
Bety e os “pikinoti” dançam por um mundo melhor


À porta ficam os chinelos de enfiar no dedo. Azuis, rosa, amarelos, uns mais limpinhos, outros surrados de tanto andar. Lá dentro, no chão de madeira, os pezinhos descalços deslizam ao compasso da música. Um rodopio para lá, o braço em arco sobre a cabeça, as palmas das mãos que se unem em pose de reza e voam em direcção ao céu. Mais outro rodopio. Um gesto que sai mais desengonçado, e a forma ternurenta como se ignora o passo em falso. A canção embalada em uníssono: “Nós é tudo pikinoti, só nu krê brincá, ba pa scola, aprendê, e assim crescê”. Bety, que escreveu a letra, em crioulo, observa cada movimento. Ela é a professora dos sonhos de qualquer menino e menina. Os seus cabelos esvoaçam, ao som da dança, como fitas na ponta de um papagaio. Serpentes de cabelo negro “rastafari”. Corpo de gazela. Uma enorme vontade de ouvir e de partilhar. Muita inteligência e carisma.
Elizabeth Fernandes, a “tia Bety” das mais de 70 crianças, dos três aos 14 anos, que frequentam as aulas gratuitas do grupo Raiz di Polon, criado por Manu Preto, usa a dança para “formar bons homens e mulheres”. Quando o sol dá lugar à lua na cidade da Praia, “filhos de varredeira de rua, de ministros, de vendedeiras de mercado e de advogados misturam-se todos para dançar, com o que cada um traz de dificuldade e de sabedoria”. Na dança, há espaço para as experiências de todos e para se aprender de tudo um pouco. Quadrados, círculos e triângulos guiam as coreografias. O corpo, que se começa a desvendar, peça a peça, é o instrumento. As canções escritas por Bety e pelo percussionista N’du sobre os direitos humanos, a higiene, e a natureza entranham-se na memória dos pequenotes.
A sala de ensaios está sempre aberta, para que ninguém fique na rua, alienado em frente à televisão, ou perdendo-se em atalhos menos felizes da vida. Não há preço a pagar, nem fichas de inscrição a preencher, basta ter ginga, ou a simples vontade de espreitar. Mas quando se deixa o chinelo à porta, está-se a selar um pacto com a bailarina principal dos Raiz: ela dá-lhes a dança e a música da Scola Raiz di Polon-Nós é tudo pikinoti, os meninos e meninas respondem com boas notas na escola e o melhor comportamento possível. Bety sabe que só assim – mostrando que cada qual tem direitos mas também deveres – pode cumprir o seu sonho de ver nascer “uma geração melhor e um ser humano melhor”.

Rita Vaz da Silva
história inédita, 2010

Pedro Moita
fotografias inéditas, 2010

5 de agosto de 2012

semana 32
Uma casa chamada regresso


No Huambo, “as crianças de rua sofrem o que sofrem porque sofrem dos outros”. Sónia Ferreira, a jovem responsável da Okutiuka, sabe que “os miúdos sofrem muito”. Sofrem a violência da polícia e dos militares, sofrem a crueldade dos adultos, sofrem a fome, o frio, a chuva, a falta de afecto e de educação, sofrem por vezes a exploração sexual na primeira adolescência.
Há centenas de meninos de rua espalhados pela cidade, organizados em comunidades e gangs. A Okutiuka tornou-se familiar entre eles. A Okutiuka nasceu na província de Benguela em Julho de 1995. O centro Okutiuka do Huambo presta assistência escolar, familiar, médica e profissional às crianças de rua. No Huambo já moraram três guerras.
Não há muita roupa na Okutiuka, depois dos colchões é o que mais falta. A mesma camisa, o mesmo vestido, vai passando de menino em menino. Um retrato não é todos os dias. Um pente também não.
— Não limparam o cabelo!
O fotógrafo compõe os colarinhos e os queixos – há sessão de retratos nesta manhã de céu azul.
— Ó: galinha do mato deu ovo!
Senta-se o Alemão.
Começaram a chamar-lhe assim porque esteve um ano na Alemanha em tratamento médico.
O menino tem uma ferida velha na perna, que apodrece e deita um cheiro nauseabundo.
Senta-se Mingo, que estava a rachar lenha a machado.
Senta-se a pequena Lurdes, que pôs um vestido amarelo com bolas pretas, um vestido que sorri por ela.
Senta-se Zangulo, que tem quatro tambores deitados ao sol, para que eles espreguicem a pele antes do ensaio de Carnaval.
Senta-se Martinho,
senta-se Paulo,
senta-se um rapaz paralisado pela pólio. Ajoelha-se no chão e sobe para o balde. Antes da Okutiuka esmolava pela cidade — às costas dos outros meninos. Clic!
Tita e Henrique não compareceram à sessão de retratos porque estão ocupados com o resto da sua vida: casaram-se e andam em mudanças. Têm um filho de quatro meses. Falta apenas dois dias para se instalarem na pequena casa que a Okutiuka comprou para eles junto à fábrica de leite.
Tita tem dezassete anos. Foi prostituta aos catorze.
Okutiuka é uma palavra umbundo. Significa “regressar”.
Sónia ainda não tem filhos. “Tenho estes…”
Duzentas crianças olham a câmara
sentadas
no fundo de um balde
no reverso de um país
no colo de uma mulher
— “Sónia, quero ficar aqui” —
numa fábrica sem leite.

Pedro Rosa Mendes
a partir da reportagem publicada em “Ilhas de Fogo”, ACEP, 2002

Alain Corbel
ilustração inédita, 2002