30 de dezembro de 2012

Tapete Persa

No mundo de hoje, sermos ou não parte dos que acedem a um conjunto largo de direitos não pode ser deixado a um acaso geográfico. Também não pode ser encarado como natural, fruto da história passada e de uma inevitabilidade de futuro. Como se uns tivessem direitos e outros necessidades: uns do lado errado, uma geografia da privação, com vestígios dispersos do que poderia ser; outros, num lado confortável, às vezes com dificuldade de se relativizar, em face do sofrimento dos outros. E muros, novos velhos muros.
No entanto, um mundo, único, de que somos parte e em que cada vez mais nos influenciamos mutuamente. E pessoas e histórias – a Eugénia, redeira de Peniche, que conquistou o direito a descontar, ou a Lydia, tchetchena, que está convicta de que o medo é um vírus, que há que lutar contra o vírus do medo. Muitas outras pessoas e histórias, separadas por geografias (afinal não é uma questão de geografia), unidas em vidas de margens, muitas unidas também na inconformidade. Porque, como dizia o autor da primeira das 52 histórias, muitos percursos individuais passaram a colectivos, muitas das realidades de hoje já foram utopias antes.
O mundo de que somos parte. Diz-nos respeito, individual e colectivamente, o presente e o futuro dos outros. Significa, por exemplo, enfrentar situações em que o simples olhar pode violentar, ou realidades que parece que se fecham à compreensão racional e afectiva. Procurar ir mais além, sem pisar o risco da dignidade dos outros. E também criar espaços de voz para aqueles precursores, que teimosamente realizam direitos, constroem hoje as suas utopias.
Sem pretensões, procuremos uma das possíveis implicações de uma cidadania global: por exemplo, todos os que têm o privilégio de contacto directo com outros e noutros lugares, têm hoje uma espécie de imperativo moral de universalismo – lembremos a palavra que caiu em desuso, o cosmopolitismo.
Cruzam-se aqui missões, assim – do jornalismo, da comunicação sobre o outro, de organizações múltiplas da cidadania, local, global. E cruzam-se também responsabilidades, que vão para além da missão específica de cada um. Por isso esta proposta feita a dezenas de jornalistas, fotógrafos, ilustradores, de juntarmos 52 histórias recolhidas ao longo de anos, às vezes nunca contadas.
Porque numa época em que se exclui ou se mata, até em afirmação de pretensas identidades, todos aqueles que têm o privilégio do contacto directo têm a capacidade e a responsabilidade de serem um misto de intérpretes / intermediários, que nos vão ajudar, individual ou colectivamente, a pôr na pele de alguém. E assim participam na construção das imagens que faremos desse alguém e da relação que com ele vamos estabelecer.
É neste conceito de cidadania e responsabilidade global que assenta este projecto, onde, tal como noutros anteriormente concretizados, se têm cruzado preocupações de (nos) aproximar o mundo, realidades em toda a sua espessura, num compromisso de aprendizagem com muitos outros – e de reconhecimento mútuo.
Que estes fragmentos possam ser os desenhos do tapete persa, de que falava Kapuscinski: um quadro em toda a sua delicadeza, diversidade e complexidade, em que cada palavra, cada traço, cada sombra não esteja ali por acaso. Que não sejam lidos como fragmentos, reduzindo o mundo àqueles instantes, mas sim como a transmissão de múltiplos olhares e circunstâncias. Que sejam escutados como expressões de narrativas inteligentes, curiosas, responsáveis, feitas de testemunhos, que nos desafiam à compreensão do mundo, do nosso papel e lugar.
E que, como acredita a poetisa finlandesa Tua Forsström, no final aquele que volta seja sempre outra pessoa.
Fátima Proença, ACEP

23 de dezembro de 2012

semana 52
Malalai Joya, a afegã que fala ao mundo


Em 2003, uma mulher levantou a voz no Afeganistão. Chamava-se Malalai Joya, vinha de uma província no sudoeste e tinha 25 anos. À sua volta estavam os representantes de grandes famílias, os líderes tribais, o poder tradicional. Era a Loya Jirga, a grande assembleia que ia definir a constituição para o país.
Quando chegou a sua vez, Malalai falou contra os senhores da guerra presentes, e todos os que tinham sangue nas mãos mas continuavam impunes. Quiseram calá-la logo ali, mas havia demasiada gente a ver.
Dois anos depois, Malalai foi eleita para o Parlamento. Nas fotografias que há no seu site aparece sempre de dedo em riste, a falar, a lutar para falar, veemente, desassombrada, no meio dos turbantes e do protocolo. Continuou a denunciar os senhores da guerra, os “mujaheddin”, os “taliban” regressados, a reciclagem dos criminosos, a corrupção nos lugares de poder. Comparou o Parlamento a um estábulo e a um jardim zoológico. Suspenderam-na. Tentaram matá-la. Passou a viver clandestinamente, de casa em casa, movendo-se de “burqa” e com guarda-costas. A família deixou a província de Farah e mudou-se para uma cidade grande onde ninguém os conhece. Malalai só se pode encontrar com o marido às vezes, em casa de alguém de confiança.
Célebre já em todo o mundo como “a afegã sem medo”, começou então a viajar pela Europa e pela América, a contar o que não se vê à distância sobre o Afeganistão: como as mulheres continuam a ser perseguidas, ameaçadas, violadas, queimadas, mortas; como a produção de ópio e o tráfico de droga só aumentaram nos últimos anos; como a corrupção floresceu no regime Karzai, com o apoio do Ocidente; como Karzai e o Ocidente reciclaram criminosos, senhores da guerra, e põem a hipótese de negociar com os “taliban”; como a presença de 100 mil soldados estrangeiros no Afeganistão trouxe violência, morte, mas não segurança e confiança aos afegãos.
Em que acredita Malalai? Que as tropas estrangeiras têm de sair. E que têm de ser os afegãos a construir uma democracia com direitos humanos e separação entre religião e Estado, ainda que isto leve gerações.
O trabalho dela, para já, é falar ao mundo.

Alexandra Lucas Coelho
História inédita, 2009

Paulo Ricca
fotografia inédita, 2009

16 de dezembro de 2012

semana 51
David contra Golias – a ousadia de Silas Siakor



























De um lado, o todo-poderoso Charles Taylor. Do outro, um mero cidadão. Silas Siakor é a prova de que uma pessoa pode fazer a diferença. Ambientalista e activista pelos direitos humanos, passou os últimos anos a reunir documentos que ajudaram à acusação internacional contra o ex-presidente liberiano.
Que Charles Taylor fique “na cadeia por muito tempo” é o mínimo que este cidadão como outro qualquer pode esperar. Até porque colocou a sua vida à disposição do bem-estar dos outros – na verdade, do bem-estar da Humanidade.
Quando o entrevistei, em Abril de 2009, Silas Siakor impressionou-me pela força da sua simplicidade. No seu tom pausado, sem pressas, com a certeza de que o mundo dará razão à sua coragem, ele não tem o charme do herói nem se lhe encontra aquela centelha de loucura que costuma iluminar os audazes. É apenas um tipo normal – “a regular guy”.
“Em cada indivíduo há potencial e todos podem desenvolver esse potencial desde que tenham espaço e oportunidade” – Charles Taylor foi a oportunidade de Silas, que reuniu uma colecção de documentos entregues nas Nações Unidas denunciando os crimes cometidos pelo ex-presidente da Libéria, que está a ser julgado pelo Tribunal Especial para a Serra Leoa. Começou por querer apontar o dedo aos políticos nacionais, pretendia forçar Taylor e outros dirigentes a cumprirem com as suas “obrigações para com o povo”. “Os direitos das comunidades locais estavam a ser abusados, elas não estavam a beneficiar da exploração dos recursos e as florestas estavam a ser destruídas”.
Mas “Taylor não estava disposto a ouvir, estava mais interessado em silenciar quem estava a documentar os assuntos e a chamar a atenção para eles”. E do nacional Silas partiu para o global. O caso da Libéria “desafia o sistema internacional”, porque mostra como “a exploração dos recursos naturais alimenta conflitos”.
Silas não teve medo de Taylor – e continua a não ter dos “muitos apoiantes” que o ex-chefe de Estado ainda tem na Libéria. Mas fecha a expressão quando fala das “pressões” a que está sujeito. “Sinto-me seguro. Mas tenho de estar atento e vigilante” – uma lição para cada cidadão comum.
Silas escolheu continuar a viver e a trabalhar na Libéria, mas reconhece que o faz “num ambiente muito difícil”. “Muitas vezes temos de pesar as opções. Quando vou ao Parlamento fazer campanha por alguma lei, fico frente a frente com gente que gostava mais de ver atrás das grades. Mas eles estão em posição de autoridade, tomam decisões. Tenho de lhes pedir que me ouçam, ainda sabendo que eles não têm a mínima motivação para o fazer”.
A pena para Taylor não deve ser inferior a “ficar na cadeia por muito tempo” e Silas gostava de ver o mesmo acontecer a outros destacados dirigentes liberianos que continuam no poder. Porém, a actuação do Tribunal Especial para a Serra Leoa preocupa Silas. “Tenho dúvidas sobre a qualidade de algumas testemunhas que depuseram em tribunal. Há muitas outras que podiam fornecer melhores provas para confirmar a ligação entre Taylor e a Serra Leoa”. “A Libéria tem uma segurança frágil. Ainda há muitas divisões, as facções levarão tempo a sanar. Muitos dos que deviam ser julgados continuam em posições de poder. E contra alguns até há provas mais fortes do que contra Taylor”.
Mas Silas é optimista e acha que a Libéria “será muito diferente dentro de uma década” – “está numa encruzilhada interessante”. E elogia a presidente Ellen Johnson Sirleaf, a primeira mulher a ser eleita para a chefia de um Estado em África.
Silas defende que “os direitos humanos não são separáveis do desenvolvimento sustentável” e batalha pela aprovação de uma lei que reconheça o direito dos indígenas à terra. É isso que faz com o Instituto para o Desenvolvimento Sustentável, que dirige.
Na Libéria, “80 a 85 por cento” das pessoas vivem em zonas rurais. O Estado foi açambarcando as terras aos indígenas. Hoje, estes podem “assentar, cultivar e viver” nelas, mas continuam sujeitos à expropriação sem pré-aviso. O país está povoado de “sem-terra nas suaspróprias terras”.
Silas critica o Norte, por continuar a olhar para África como “uma reserva de recursos naturais”, onde vai “buscar mas não repõe”. Mas deixa uma esperança: “Talvez a próxima geração de activistas deixe de olhar subservientemente para o Norte e passe a olhar para o Sul, a pensar por si própria, a decidir em que direcção quer ir, a pedir ajuda se precisar, mas numa base de parceria”.

Sofia Branco
a partir da entrevista publicada no jornal Público, 15 de Abril de 2009

Enric Vives-Rubio
inédita, 2009

9 de dezembro de 2012

semana 50
Memória





Para a “Memorial”, ONG russa de direitos humanos, o Cáucaso do Norte russo é um cenário de graves violações de direitos humanos, principalmente depois do início da guerra da Tchetchénia, em 1991. Criada em 1987, em plena “perestroika”, a “Memorial” tem vindo a investigar e denunciar actos cometidos contra a população civil: pessoas desaparecem, são detidas ilegalmente e torturadas.
Quando se fala da luta pelos direitos humanos na Tchetchénia, não se pode passar ao lado da figura de Anna Politkovskaia, jornalista assassinada a 7 de Outubro de 2006, em Moscovo. Poucos são os que duvidam que a causa deste crime está nas denúncias das violações dos direitos humanos levadas a cabo pelas autoridades tchetchenas.
Natália Estemirova foi outra mulher que tombou pelos direitos humanos na Tchetchénia. Raptada por desconhecidos a 15 de Julho de 2009 em Grozni, capital tchetchena e assassinada no mesmo dia. Natália estava convencida de que “os defensores dos direitos humanos são assassinados com a benção do poder”.
Oleg Orlov, também dirigente da “Memorial”, acusou Ramzan Kadirov, presidente da Tchetchénia, de estar por detrás do assassinato de Estemirova. Está agora a ser julgado por “calúnia”.
Lydia Yusupova, advogada de Grozni, continua a procurar pessoas desaparecidas na Tchetchénia.

José Milhazes
inédita, 2010

2 de dezembro de 2012

semana 49
Guardar a dor do inimigo


Esta é uma história que nos ensina o respeito pelas imagens que não nos pertencem. Dentro de caixas de madeira no meio do deserto de Tindouf, sudoeste da Argélia, o fotógrafo italiano Patrizio Esposito descobriu um dia milhares de rostos – homens, mulheres, crianças, risos, brincadeiras inocentes, momentos de ternura, recordações de uma outra vida.
Eram as fotografias que os soldados da Frente Polisário, em luta contra Marrocos pela independência do Sara Ocidental, tinham, ao longo dos anos, tirado das carteiras dos soldados marroquinos que matavam ou capturavam. Eram imagens que tinham acompanhado esses homens para a guerra, e que muitas vezes lhes teriam servido de consolo.
Porque é que os sarauís as guardaram? Porque eram uma prova de que aquela guerra (entre 1975 e 91) existia, ao contrário do que dizia Marrocos. E porque eram o rosto do inimigo. Esposito ficou fascinado com as mais de cinco mil fotos que, nesse ano de 1991, durante uma viagem para transportar ajuda humanitária, a Polisário lhe mostrou pela primeira vez. “Pareceu-me um incrível monumento contra a guerra”.
Juntamente com o realizador Mario Martone e com Fabrizia Ramondino, fez uma proposta à Polisário: usar as imagens como testemunho da crueldade e absurdo da guerra. Mas aquelas eram imagens que não lhes pertenciam e por isso decidiram que a única maneira de o fazer seria criar um livro, com uma selecção de 483 fotografias, do qual fizeram apenas vinte exemplares. Como quem transporta um segredo, Esposito leva-o de casa em casa, de país em país e mostra-o apenas a pequenos grupos, em encontros privados. É assim, em voz baixa, longe dos holofotes, que conta ao mundo a história esquecida do conflito no Sara Ocidental. Os vinte livros vão sendo, a pouco e pouco, confiados a “guardiões” – figuras conhecidas, intelectuais, escritores, artistas – que guardarão um exemplar cada um, criando “um mapa ideal com diferentes pessoas e realidades”. Cada livro é um testemunho, um pedaço da história dessa guerra, uma tentativa de combater o esquecimento. “Ao guardarem estas fotos, os sarauís contam a sua própria dor através da dor do inimigo”. Por isso Esposito chamou ao projecto “Necessidade de Rostos”.

Alexandra Prado Coelho
actualizada em 2009, a partir da entrevista publicada no jornal Público, 2006

Arquivo Saharaui da Guerra / Patrízio Esposito
fotografias publicadas em “Necessità dei Volti”

25 de novembro de 2012

semana 48
A coragem de contar histórias


A dar as boas vindas à Casa dos Jornalistas em Paris, a associação que desde 2000 acolhe jornalistas que pedem asilo político em França, está o sorriso de Jean Jacques Jarel, repórter do Gabão. É o seu aniversário. Tem os olhos molhados de comoção: “Sou licenciado em filosofia, mas nunca dei aulas. Tinha apenas 19 anos quando me tornei jornalista e durante uma década trabalhei na imprensa escrita, na rádio e na televisão do meu país”. Depois do entusiasmo das recordações de juventude, o seu sorriso apaga-se e fala daquele telefonema: “Foge, andam à tua procura”, dizia uma voz do outro lado do auscultador. “Era de manhã, há uns meses atrás, e tinha acabado de noticiar que o nosso presidente estava doente, em recuperação num hospital em Barcelona. A vocês poderá parecer estranho, o vosso país é democrático. Mas no Gabão e em tantos outros países difundir notícias como esta leva-nos à prisão, à tortura. Para o povo, o presidente deve representar a perfeição, o ‘Deus na Terra’. Não é lícito conhecer o seu estado de saúde, os seus problemas. E se alguém tenta informar, desencadeia uma perseguição. Mas eu fi-lo para informar os meus compatriotas, porque era o meu dever. Para nós, os direitos humanos não existem, a liberdade de imprensa é apenas uma miragem. E se queres ser jornalista e não arriscar a vida, tens de acariciar a pele do poder”. O grande sonho de Jacques é viver em Paris com a sua família e continuar a ser jornalista. “Estou consciente que aqui será muito difícil, o mercado dos “media” é fechado. Assim, inicialmente, vou procurar um trabalho que me permita viver. Gostaria de voltar a estudar e tirar uma licenciatura na minha nova Pátria, porque aqui o título ‘made in Africa’ tem pouco valor”.

Vincenzo Sassu
história e fotografia inéditas, 2010

18 de novembro de 2012

semana 47
112 a duas rodas


O que move Elias e equipa?, perguntam-me…
Talvez a consciência de que ali, no interior de Caia no coração de Moçambique, a diferença entre a vida e a morte pode estar tanto no arroz “mata-fome” trazido pelo voluntário, como no curativo por ele feito ou na viagem garantida até ao médico, o único, a uns 20 ou 30 quilómetros.
Quando a dor aperta ou o corpo não aguenta o caminho difícil e esburacado, os cerca de vinte rapazes e raparigas que Elias coordena vão além da assistência domiciliária regular e gratuita a 77 doentes. É aí que colocam o paciente no atrelado, que o tapam com mantas, que o prendem com o cinto de segurança e que pedalam... Sobem para o selim da bicicleta-ambulância e pedalam contra a doença, o tempo e o isolamento.
Eles são a emergência médica, apta para todo-o-terreno. “Se não fosse assim, simplesmente, estas pessoas em sofrimento não saíam de casa”, afirma Elias. O improviso balança mas antes era pior. Até surgir a ideia, apoiada pelos Serviços Distritais de Saúde de Caia e pelo Consórcio Associações com Moçambique, os doentes “mais afortunados” seguiam para o Hospital rural de carroça ou carrinho de mão.
A maioria dos pacientes estão infectados pelo VIH e alguns fazem já tratamento antiretroviral. Estamos em Sofala, um dos corredores do continente para o Oceano, terra de passagem de camionistas e de concentração de prostitutas. Há muito que Elias lhes diz que o prazer encerra perigos, que a camisinha salva vidas, que o futuro começa ali mesmo. Se o ouvem? “Uns sim, outros nem por isso!”
Se compensa? Com oito filhos em casa e pelo menos 20 seropositivos em cada 100 habitantes nesta província que é sua, como não?

Paula Borges,
história inédita, 2010

Jorge Silva
ilustração inédita, 2010