2 de dezembro de 2012

semana 49
Guardar a dor do inimigo


Esta é uma história que nos ensina o respeito pelas imagens que não nos pertencem. Dentro de caixas de madeira no meio do deserto de Tindouf, sudoeste da Argélia, o fotógrafo italiano Patrizio Esposito descobriu um dia milhares de rostos – homens, mulheres, crianças, risos, brincadeiras inocentes, momentos de ternura, recordações de uma outra vida.
Eram as fotografias que os soldados da Frente Polisário, em luta contra Marrocos pela independência do Sara Ocidental, tinham, ao longo dos anos, tirado das carteiras dos soldados marroquinos que matavam ou capturavam. Eram imagens que tinham acompanhado esses homens para a guerra, e que muitas vezes lhes teriam servido de consolo.
Porque é que os sarauís as guardaram? Porque eram uma prova de que aquela guerra (entre 1975 e 91) existia, ao contrário do que dizia Marrocos. E porque eram o rosto do inimigo. Esposito ficou fascinado com as mais de cinco mil fotos que, nesse ano de 1991, durante uma viagem para transportar ajuda humanitária, a Polisário lhe mostrou pela primeira vez. “Pareceu-me um incrível monumento contra a guerra”.
Juntamente com o realizador Mario Martone e com Fabrizia Ramondino, fez uma proposta à Polisário: usar as imagens como testemunho da crueldade e absurdo da guerra. Mas aquelas eram imagens que não lhes pertenciam e por isso decidiram que a única maneira de o fazer seria criar um livro, com uma selecção de 483 fotografias, do qual fizeram apenas vinte exemplares. Como quem transporta um segredo, Esposito leva-o de casa em casa, de país em país e mostra-o apenas a pequenos grupos, em encontros privados. É assim, em voz baixa, longe dos holofotes, que conta ao mundo a história esquecida do conflito no Sara Ocidental. Os vinte livros vão sendo, a pouco e pouco, confiados a “guardiões” – figuras conhecidas, intelectuais, escritores, artistas – que guardarão um exemplar cada um, criando “um mapa ideal com diferentes pessoas e realidades”. Cada livro é um testemunho, um pedaço da história dessa guerra, uma tentativa de combater o esquecimento. “Ao guardarem estas fotos, os sarauís contam a sua própria dor através da dor do inimigo”. Por isso Esposito chamou ao projecto “Necessidade de Rostos”.

Alexandra Prado Coelho
actualizada em 2009, a partir da entrevista publicada no jornal Público, 2006

Arquivo Saharaui da Guerra / Patrízio Esposito
fotografias publicadas em “Necessità dei Volti”

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