22 de julho de 2012

semana 30
Nancy e os sem-nome


Quando conheci Nancy Gomez, ela era magra e usava óculos.
Tinha 50 anos, cinco filhos, catorze netos e todos viviam numa pequena casa com aspecto de obra inacabada. Lá dentro, havia uma escadaria de tijolo para quartos com grades nas janelas. O cimento, frio, era ainda o pano-cru que cobria paredes, chão, vidas.
O boné de pala, as palavras sem maquilhagem e o ar resoluto conferiam a Nancy uma autoridade natural. Nessa época, ela era líder reconhecida e mulher respeitada nos cerros de El Valle, as favelas de Caracas. Milhões anónimos num território de avessos, labirinto dentro de uma encruzilhada chamada Venezuela.
O dia de Nancy era de azáfamas e sobrevivências. Com perícia e crucifixos no retrovisor, conduzia jipes de aluguer, o transporte público desta cascata amontoada de gente, emparedada entre barracas, violências e estigmas. Casas, escolas e centros de saúde estavam em construção, como um país novo. E a tudo ela acudia, mobilizando vontades, desfazendo inércias e desconfianças.
Hugo Chávez era então o Deus imaculado dos esquecidos e miseráveis de Caracas. Em El Valle diziam-no portador de uma nova esperança e dos ensinamentos de Cristo e Bolívar, citados amiúde a partir de livrinhos que andavam de mão em mão. Ah!, e é claro: ele tinha sido o único presidente a visitar os humildes, a “chusma”, a olhá-la de igual para igual. Falava “sem precisar de trazer um dicionário na boca”. Por isso, o entendiam. Por isso, o seguiram. “Se ele é um ditador, é um ditador dos pobres”, dizia Nancy.
Passaram anos. Um novo-riquismo saiu às ruas, ostensivo, com tração às quatro rodas e duas pedras de gelo. Sem cuidar de sonhos em filas de espera. Nas curvas apertadas das políticas, dos imaginários e dos vidros fumados, Nancy talvez tenha acumulado angústias e desalentos.
De Caracas, porém, dizem-me que ela continua a tricotar milagres chiquitos e a viver desassossegada, voz e mão dos que sempre esperam alento e pão. Se dias piores vierem, tenho, pelo menos, uma certeza: a cada madrugada que a cidade dos sem-nome adormecer presépio de luzes e sombras, Nancy continuará a enganar a escuridão com um sorriso sem lamento. E dirá, como naquele tempo: “A noite fez-se para dormir. Se não houver luz, se não houver o que comer, sabemos, pelo menos, que amanhã o sol vai nascer de novo”.

Miguel Carvalho
texto inédito, 2010, a partir de elementos de reportagem publicada na revista Visão, em Janeiro de 2003

Lucília Monteiro
fotografia inédita, 2003

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