4 de novembro de 2012

semana 45
Íamos só aprender a ler


– Fui levado por eles… depois mandaram-me pedir nas ruas. Fui, mas não consegui dinheiro. Aruna só foi menino até aos seis anos; agora é talibé, de taliban.
Seguro-lhe a mão fria mas suada, a mesma que tantas vezes usou para se proteger.
– Bateram-me muito e fiquei inconsciente. Quando acordei, fugi e fui pedir ajuda.
Os olhos estão agora cravados na linha que desenhou com o pé na terra vermelha de Bafatá. É como se a vergonha fosse sua. Talvez porque ele acha tudo em nada; talvez porque eu não acho nada em tudo. E se as esperas e desejos de uma criança não se estendem para além de cinco minutos, Aruna esperou quatro anos.
São conhecidos como os “Meninos Talibés”. Crianças levadas das tabancas (aldeias da Guiné-Bissau), para estudarem nas Madrassas, as escolas corânicas, mas que acabam nas redes de tráfico. Levadas para outros países, aí são sujeitas a trabalhos forçados, à mendicidade e à exploração sexual.
Malan é um muçulmano guineense que luta contra os falsos mestres corânicos. Com a ONG que fundou, a “SOS – Crianças Talibé”, já recuperou mil e duzentas crianças. É ele quem me leva numa viagem impressionante até à aldeia de Maimuna, Ramatulai e Tulai. Têm agora entre onze e catorze anos e estiveram fechadas num quarto durante oito anos sujeitas a violações constantes. Só foram libertadas porque estão grávidas e perderam o valor comercial. O Régulo autoriza-me a entrevistá-las.
— Maimuna, não tenhas medo, conta-me o que te fizeram.
— Levaram-me com eles para o Senegal. Queria aprender a ler e a escrever. Ele perguntou-me se tinha mais alguma amiga que também quisesse estudar. Disse-lhe que sim.
— Ramatulai, o que te aconteceu lá no Senegal?
— Levaram-nos e fomos fechadas num quarto. Íamos apenas para aprender a ler…
— E tu, Tulai, o que sentes agora?
— Feliz, mas quero aprender a ler.
O desejo de Tulai é o mesmo de Ramatulai e de Maimuna, mas não serão obedecidos. As famílias fogem da vergonha e vão sujeitá-las a casamentos forçados nos próximos meses.
Estou a preparar as malas para voltar a Lisboa quando sinto que um carro pára à porta da delegação da RTP África, em Bissau, e alguém grita:
— Conseguimos! Conseguimos duas vitórias!
É o professor muçulmano que corre para mim de braços abertos.
— O Aruna encontrou a família graças à tua reportagem! Quanto às meninas, uma ONG internacional garantiu alimentação e cuidados médicos para elas até darem à luz.
Malan levanta as mãos ao céu e agradece com sonoros “Allahu akbar!”, Deus é grande.
Mais tarde quis saber o que lhes acontecera.
Aruna vive actualmente com os pais nos arredores de Bissau; Ramatulai teve uma menina; Maimuna abortou ao quinto mês e Tulai não se adaptou e fugiu para o Senegal. Talvez para evitar o casamento e aprender a ler. Ninguém mais a viu.
Actualmente há mais de cem mil crianças da África Ocidental ainda nas mãos dos traficantes.

Luís Castro
a partir de reportagem para a RTP, na Guiné-Bissau, 2008
ilustração a partir de frame da reportagem para a RTP, 2010

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