15 de abril de 2012

Semana 16
Cesto da Paz


No início era o cesto. A Fundação J’aime Haiti não tinha mais nada para oferecer quando deu os primeiros passes (sic) em 2006. Vinte cestos de basquetebol para instalar em bairros pobres da capital do Haiti, Porto Príncipe. Faltava o cimento para pavimentar os campos. O projecto, meio manco, foi baptizado Cesto da Paz.
“Aquilo que parecia uma infelicidade, tornou-se uma oportunidade. A comunidade juntou-se, recolheu fundos e tratou da pavimentação”, relembra Ti Gera (Pequeno Gerald). O fundador de J’aime Haiti fala de uma vitória ao primeiro tempo: “a ideia era precisamente usar o desporto para unir e criar oportunidades de desenvolvimento comunitário”.
De cesto em cesto, Ti Gera conseguiu lançar o basquete em diferentes áreas da cidade. Em 2007, nasceu o Torneio Cesto da Paz, com dez equipas e jogado em 4 bairros.
Pontos somados, e a J’aime Haiti já instalou 70 cestos, dezenas de campos e vai na terceira edição do torneio. Na última, foi também criado um concurso de rap crioulo. O vencedor conquistou a fundação e o direito a gravar um disco. Em Agosto, vai haver nova estrela de rap crioulo no mercado local.
O sucesso do Cesto da Paz chamou mais patrocinadores ao jogo e, hoje, a fundação fintou um dos maiores adversários: tem agora vários apoios, nomeadamente de uma empresa de cimento.
Dia 12 de Janeiro de 2010. No Haiti todos sabem a data de cor: terramoto de 7.0 na escala de Richter. Sem tempo para intervalo, a fundação decidiu continuar as actividades regulares. Instalou 17 cestos e apostou numa escola destruída pelo sismo. Ergueu estruturas de metal que servem de sala de aula. Desta vez, o cimento é um material que ninguém quer ouvir falar. Na hora do recreio, a bola é lançada ao ar: é tempo de jogar basquetebol.
Apesar de rodeado de desporto, Ti Gera, 30 anos, não pode participar nas actividades físicas. Nasceu com distrofia muscular. Aos 5 anos ainda conseguia andar. Hoje, está numa cadeira de rodas, quase sem mobilidade corporal. Nada que o incomode. “Sou sortudo. Devolvo à comunidade aquilo que ganhei pessoalmente”. E não é bem verdade que não participe nas acções desportivas. Ti Gera oferece-se sempre para ser o árbitro.
Afinal, porquê J’aime Haiti? “Podía ter ido para fora. Mas há um laço que me prende aqui, um lado sentimental”, confessa. “Devo isto ao país, não posso partir”. Por outras palavras, ele aime o Haiti.

Mariana Palavra,
texto inédito, 2010

Asociação J’Aime Haiti
fotografia inédia, s.d.

8 de abril de 2012

Semana 15
Os jovens de Clichy-sous-Bois



Clichy-sous-Bois é cenário sombrio, sob a mancha cinzenta de prédios degradados, repletos de famílias numerosas, pobres, vindas de longe, com filhos que não conhecem nenhum país de origem senão a França.
A morte dos dois adolescentes, Zyad Beena, de 17 anos, e Bouna Traoré, de 15 anos, electrocutados num transformador de alta tensão quando se escondiam da polícia, ainda pesa. Nessa noite, não houve qualquer explicação da polícia, do Governo, de qualquer instituição. A mágoa tomou a forma de “revolta social” que incendiou nesse Outono de 2005 primeiro Clichy-sous-Bois, no Leste de Paris, e depois os subúrbios de várias grandes cidades da França. Clichy-sous-Bois mistura os sintomas da problemática integração de imigrantes com os da pobreza e do desemprego, cuja taxa média de 26 por cento é quase três vezes superior à média nacional.
As pessoas de Clichy vivem num enclave, sem transporte directo que as ligue à capital, sem portas de saída para novas oportunidades, cortadas do mundo que os rodeia. Esta é uma cidade jovem, onde quase metade da população tem menos de 25 anos.
As torres ergueram-se na desordem e a cidade aumentou. Um imenso espaço verde, onde um grupo de mulheres em traje muçulmano passeia, podia ter sido transformado num jardim. Mas também ele parece só estar ali por acaso, desalinhado, ao abandono. Nada nesta cidade parece ter sido pensado para acolher pessoas. É generosa para os que chegam acolhidos pelos que já aqui estão. Mas algo de impiedoso instala-se na vida dos que aqui passam a viver.
Samir Mihi é um dos fundadores da aclefeu (Association, Collectif, Liberté, Égalité, Fraternité, Ensemble, Unis) criada para que as mortes de Zyad e Bouna não tenham sido em vão. Toda a cidade os conhecia e a eles se refere como “os nossos filhos”.
“Podia ser bom viver em Clichy. Mas as pessoas foram deixadas à sua sorte aqui", conclui Samir. “As paredes têm lepra, nas casas não há água, os prédios não têm elevador”, descreve. “Depois admiram-se que as pessoas sintam ódio”.
Sofiane assume-se como porta-voz de um pequeno grupo de alunos à frente do Liceu Alfred Nobel. “Vivemos nos subúrbios, por isso não existimos. Vivemos na única cidade onde não existe nada”. Os jovens pouco saem de Clichy. Cansados dos controlos de identidade, quase nunca vão a Paris. “A polícia abusa. E é só por causa da cor que temos na pele”.

Ana Dias Cordeiro
a partir de reportagem em França para o jornal Público, em Maio de 2007

Rodrigo Saias
ilustração inédita, 2010

1 de abril de 2012

Semana 14
No Bairro de Aldoar o tema do momento
é o tema de qualquer momento: sobreviver



A palavra crise pouco dirá a quem vive em crise desde que vive? “Quem é muito pobre quer lá saber da crise!”, prega Esmeralda Mateus, presidente da Associação de Moradores do Bairro de Aldoar, na zona ocidental do Porto. A reformada diz isto e logo desdiz: “E se, com essa crise, acabam com o rendimento social de inserção [RSI]? De quê que esta gente vai viver?”.
Há muito desocupado encostado às paredes limpas do bairro. “Não arranjam trabalho”, legenda Cecília Pinto, atrás do balcão do bar associativo, contas enegrecidas pelos fiados. A filha dela está com 20 anos e não vai além de umas horitas num infantário. “Tirou o 9.º ano. Afinal, não sei para quê!”.
Uma espécie de calvário é percorrido por quem não consegue entrar no mercado de trabalho ou dele sai e esgota subsídio de desemprego e subsídio social de desemprego sem conseguir reempregar-se. O RSI pode, então, surgir como única forma de atenuar a severidade da pobreza. Esmeralda Mateus não quer que se pense que a mais polémica prestação social é alguma fartuna. “Uma pessoa sozinha recebe 187 euros e isso para que dá? Onde estão as voltas de ouro que antes se viam ao pescoço? Foram vendidas ou estão no prego! Ainda bem que a canalha, agora, tem almocinho na escola! Todas as noites há gente a vasculhar os caixotes do lixo ao pé do supermercado!”.
As notícias sobre a crise chegam pelo televisor incrustado na parede. E é como se ali estivesse a professora do Charlie Brown a pronunciar frases incompreensíveis. No Bairro de Aldoar, o tema deste momento é o tema de qualquer momento: sobreviver.

Ana Cristina Pereira
a partir da reportagem publicada no jornal Público, 1 de Maio de 2010

Adriano Miranda
foto inédita, 2010

25 de março de 2012

Semana 13
Presa ao Kosovo



O que é feito de Maria? Chamo-lhe assim porque não lhe posso dar o nome verdadeiro e este é o mais português que há. Da última vez que a vi, em 2007, vivia numa mísera aldeia do Kosovo há oito anos, presa à casa dos sogros por amor dos filhos. Conhecera o marido na Alemanha, para onde emigrara do seu Trás-os-Montes natal em busca de alguma sorte e bulício, e acabara apaixonada – que raio de sorte! – por um albanês, imigrante como ela mas ilegal, que vivia do jogo e de fazer segurança. Havia uma grande foto dele, na sala quarto da casinha dos sogros: bonito e vistoso, com um chapéu branco de “gangster” americano. Maria tinha 18 anos, ele prometeu-lhe casamento. Acabou nesse estranho Kosovo, que para ela se resumiu à aldeia do marido, em boa verdade um aglomerado de casas pobres e tristes entre ruas poeirentas, cercadas de altos muros em tijolo, como é costume albanês. Em oito anos, veio uma vez a Portugal ter o segundo filho e, sobretudo, renovar os documentos. Foi à pala do casamento que ele pôde legalizar-se na Alemanha, para onde voltou. Ficou-lhe com o passaporte e, depois de saber que havia militares portugueses no Kosovo, mandou tirar-lhe o telemóvel. Nunca mais soube dele – lá de onde ele esteja telefona de vez em quando aos pais. Vive do que estes lhes dão, que é quase nada, porque ele dinheiro não manda. Sai da aldeia para a vilória próxima apenas para visitar (com o sogro) a avó albanesa. A Pristina foi uma vez, ao hospital, acompanhar a sogra. É isso que ela faz, tomar conta deles. Há três anos, queria vir-se embora, farta de miséria e atraso. Os filhos prendem-na. E agora, onde estará?

Luísa Meireles
a partir de reportagem publicada no jornal Expresso

António Pedro Ferreira
foto publicada no jornal Expresso

18 de março de 2012

semana 12
Maria Eugénia, a redeira que conquistou
o direito a descontar


No Inverno, a peúga calçava o pé e o saco de plástico protegia a cabeça. No Verão, o sol escurecia a perna direita. No chão de Peniche ou a bordo das traineiras com cheiro a sardinha. Na Gaivota Branca, no barco Fruto da Liberdade. Maria Eugénia recorda. Senta-se no chão da casa, perna direita traçada sobre a esquerda, prende a rede no dedo grande do pé, dá laçadas com uma agulha muito grossa. Redeira há 58 anos, esta mulher encorpada desemaranhou fios, coseu linhas para agarrar carapaus e uma reforma futura. Sacudiu o mundo dos homens, disse que também queria. O direito a descontar. O direito à Segurança Social. Conseguiu.
Maria Eugénia, quarta classe, filha de pescador, mal esperou pelo 25 de Abril de 1974. Redeira desde os 10 anos, partilhava o ofício com 60 mulheres de Peniche. Abraçou as colegas, as 30 que quiseram, e rumou ao mundo dos sindicatos e das cooperativas de pescadores, que floresciam por ali. O mulherio ficou dividido em dois grupos, sindicalizadas para um lado, não sindicalizadas para outro. “Nós e elas”. Hoje restam cinco de cada lado. “Ainda há zangas”. Maria Eugénia ri.
Vinha o mestre da traineira. Olhava para elas. Elas para ele. Mãos à espera de emendar redes. De ganhar o dia. Maria Eugénia ficou de fora várias vezes. Os “patrões das privadas” não gostavam de mulheres sindicalizadas, então “salvas” pelas embarcações das cooperativas. Palavras de uma redeira que tem hoje uma reforma mensal de 370 euros. Não é muito, mas é seu por direito. Um direito conquistado. “Não é, meu amor?”.
Amor é o marido, conheceu-o num armazém de pesca. Casaram vai fazer 50 anos. Ele faz barcos de madeira, ela conserta bocados de rede. Ele usa-as nas miniaturas. Ela fica contente. A conversa termina, Maria Eugénia fica, sentada no chão, perna direita traçada sobre a esquerda.

Lúcia Crespo
história e foto inéditas, 2010

11 de março de 2012

semana 11
Filomena, a rebelde

Numa esquina do caótico cruzamento do bairro de Caracol com a estrada de Bor, nos subúrbios próximos da capital guineense, Filomena Quessin, uma rapariga da etnia balanta, a mais numerosa da Guiné-Bissau, improvisou o seu modesto negócio. Estuda de manhã e à tarde vende donetes, saquinhos de água fresca e sorvetes de “cabaceira”* a quem procura algo para atenuar o sufocante calor da época das chuvas. Filomena leva esta vida há pouco mais de um ano, desde que veio de Bessassema de Baixo, uma aldeola da remota região meridional de Quínara. Deixou Bessassema, onde não há luz eléctrica nem água canalizada, para escapar ao “beguima uiné lanté”, a prática ancestral de dar as meninas em casamento contra a sua vontade. Quando viu os familiares a prepararem a farinha de milho, que antecede as cerimónias nupciais, aproveitou a escuridão e abandonou a casa, na companhia de uma conterrânea, numa fuga a um destino comum. Aceitar o marido imposto pelo pai equivalia a sujeitar-se à maternidade precoce, a ficar presa às lides domésticas e a renunciar à escola. Caso contrário, teria de sofrer a maldição paterna e a separação dos seus. Era quase uma questão de vida ou morte. Protestante convicta e determinada a instruir-se, optou pela liberdade e refugiou-se nas instalações da Igreja Evangélica em Bissau, porto de abrigo de cerca de duas dezenas de jovens em idêntica situação. Dois anos depois, o progenitor, que jurou matá-la pela afronta, acabou por perdoá-la e reconciliaram-se. Mas a reaproximação não foi fácil. Só foi possível depois do pai ter feito uma cerimónia sagrada, que na crença animista local, tem o poder de anular um sortilégio lançado contra a filha, e que podia virar-se contra si, por ter faltado à palavra dada.

*Fruto de uma árvore silvestre, conhecida também por bao bao. Em Angola é chamada imbondeiro

Fernando Jorge
texto inédito, 2010

Marta Jorge
fotografia inédita, 2010

4 de março de 2012

semana 10
Os três mosqueteiros de Bulenga



Patrick traz a fruta na mão. William, o saco de arroz. Sam, o feijão. E ervas para o chá, quando o feijão e o arroz se esgotam no orfanato. Patrick, William e Sam chegaram sozinhos à idade dos vinte. Na terra-berço do Nilo, a cada 12 segundos, há uma pessoa que morre de sida. Para trás, o vírus deixa milhões de meninos órfãos.
E lá vão eles, Patrick, William e Sam. Apressados. Saem, de novo, para os trilhos das bananeiras que refrescam a terra vermelha de Bulenga, encharcada de calor. Ali, no cruzamento, procuram uma “boda-boda” ou uma “matatu”. De mota ou carrinha pão-de-forma, chegam em 20 minutos ao ghetto de Kampala, assim baptizado pelo músico Bobby Wine. Aqui, ele é o senhor Ghetto President.
Cola-se à pele um cenário de cores de chumbo. Debaixo deste telhado de fome caminham muitas crianças. E dormem quase invisíveis por entre chapas de zinco e caixas de cartão, que fazem a vez de cama. Apertada. A sujidade e as doenças também são inquilinos. Também há uma amostra de ribeira. Fétida. Este canal serve para lavar roupa, urinar e beber água. Há abusos e desconfiança entre estes meninos e meninas que enfiam o nariz num saco de plástico com cola. Aqui cheira a esquecimento.
Outras crianças rezam ajoelhadas no chão. Rezam como quem agradece. Hoje, Patrick, William e Sam conseguiram juntar xelins e trazer alimento. Um saco com papa de farinha e feijão. Outro saco com água. É o primeiro aconchego do estômago em muitos dias de jejum. Aqui também há filhos da guerra, no Norte do Uganda. Um grupo de rebeldes é comandado pela loucura de um homem. Joseph Kony diz combater em nome de Deus e rapta crianças que transforma em soldados.São meninos que ou matam ou morrem. No ghetto de Kampala moram vidas – ainda curtas – que escaparam à tortura. Patrick, William e Sam têm casa para dar a alguns.
Não usam capa nem espadas. Nunca ouviram falar de Athos, Portos ou Aramis. Mas são tão ou mais inseparáveis. Até já têm nome de grupo: “Raising Up Hope for Uganda”.
Hoje, os três mosqueteiros regressam a Bulenga com mais uma criança. Estão ali 40. Já se ouvem os gritos das brincadeiras.
O menino sufoca o galo num abraço. Aquela menina lava o vestido no alguidar. Outro menino desenha na folha gasta à sombra do muro inacabado. Esta menina já dá mama ao bebé. E este menino chupa cana-de-açúcar, doce como a jaca que entra pelo portão de ferro do orfanato. Patrick traz fruta na mão.

Rita Colaço
a partir da reportagem realizada para a Antena 1, em Maio de 2009

João Maio Pinto
Ilustração inédita, 2010