3 de junho de 2012

Semana 23
O rio de Myung-hee


“A minha aldeia é Chongju. Para viajar dentro do meu país é preciso ter uma autorização do governo. Sem ela, temos de ser muito espertos para evitar os guardas. Foi o que fiz quando fugi da Coreia do Norte para a China. Fugi pelo rio Tumen. Foi aí que aos 27 anos vi, pela primeira vez, o reflexo da minha dúvida: quem sou?”.
Myung-hee. Um outro nome que protege quem ainda por lá ficou. Treinada para fazer vénias diante do retrato de Kim Il-sung. E para sorrir se queria comer. Ou se não queria que lhe batessem  com um pau.
A morte do “Grande Líder”, em 1994, acabou com as míseras duas rações diárias de arroz. A família subia às montanhas para colher raízes de plantas que misturavam com farinha de milho. Um reboco para tapar o estômago no país apresentado ao mundo como “o paraíso dos trabalhadores”.
Coreia do Norte: uma monarquia-socialista-comunista, onde o filho sucede ao pai. De Kim Il-sung ao “Querido Líder” Kim Jong-il, o testamento do medo dá fôlego à ditadura há mais de 60 anos. O regime sobrevive à conta do policiamento de proximidade. Vizinhos que se controlam e denunciam para não serem denunciados. Sessões de censura pública. Um sistema que anula até pensamentos de dúvida. Os sussurros de que algo vai mal no reino dos Kim – se existem – correm sempre à cautela. Myung-hee ouvia dizer que na China até os cães comiam arroz. Desafiou a corrupta e também já mal-nutrida polícia e fugiu com mais dois amigos, por uma das fronteiras fluviais com a China. No rio Tumen, um dos amigos morreu afogado.
O rio Tumen. Águas de fuga, morte e epifania.
“Tive de continuar para arranjar trabalho na China. Durante um ano só trabalhei e comi. Enganaram-me. Nunca me pagaram. Diziam que iam contar às autoridades chinesas que eu estava ali. Há coisas que quero apagar da memória...Bateram-me muito. Fui vendida, traficada… fui tratada como um animal… Sempre ouvi que Kim Il-sung era o maior líder do mundo e que estávamos a viver num paraíso, mas agora percebo que eram só mentiras. E nem dinheiro tinha para regressar. Fui novamente até ao rio Tumen, para cometer suicídio. Pensei que, morrendo, o meu corpo poderia flutuar até à minha cidade natal.
Foi aí que aos 27 anos vi, pela primeira vez, o reflexo da minha dúvida: quem sou?”.
Myung-hee.
O reflexo do rio devolveu-lhe a identidade. Hoje vive na Coreia do Sul.

Rita Colaço
a partir da reportagem para a Antena 1, em Setembro de 2006
fotografia inédita, 2006

27 de maio de 2012

semana 22
Um lar contra a intolerância

Quando chegar a sua vez, Nora Mülhpforte, 82 anos, em parte vividos num palco, quer passar aqui os seus últimos dias. “Quando já não puder dançar”, sublinha, coquete, a velha profissional de danças de salão que inaugurou em Berlim o primeiro lar europeu para lésbicas e gays com um sentido tango argentino.
Nora tem uma dessas biografias não lineares que dificultam a integração num lar tradicional onde se folheiam álbuns fotográficos durante a semana, e aos domingos e feriados se espera a visita dos netos e afilhados. Num outro tempo, foi casada e teve dois filhos, mas depois da morte do marido, em 1955, Nora descobriu o amor pelas mulheres. “Eu sou uma mulher que ama mulheres”. E agora, que perde a independência, não quer ter de omitir a sua história.
A opção de Nora não é pacífica. Cansada de responder eternamente às mesmas perguntas, e explicar que a sua companheira, Gabi Stiller, 20 anos mais nova, não é sua filha, Nora vê- -se agora também atacada por membros da comunidade gay que receiam as consequências
de “soluções segregacionistas” e a destruição de décadas de trabalho em prol da integração, com a abertura de um “parque temático”.
Sem paciência nem energia para se defender e justificar mais uma vez, a velha dançarina, que optou por viver fora do compasso, apenas tem um desejo: poder viver num lar onde a vida continue como era antes. Viver e deixar viver.

Lina de Lonet Delgado
a partir da reportagem publicada no jornal Expresso/Única, 28 de Dezembro de 2008

Marcel Steger
publicado no Expresso/Única, 28 de Dezembro de 2008

20 de maio de 2012

semana 21
Sem sombra de pecado

“Chamo-me Olga Mariano. Sou uma mulher-árvore. Orgulhosa das minhas raízes e dos frutos que vão nascendo dos meus braços solidários. Trabalho para ajudar as outras mulheres e sobretudo as crianças. Sou uma mediadora sociocultural. Por ser mulher e, particularmente, por ser viúva, enfrentei muitas resistências para formar a AMUCIP, a primeira associação portuguesa de mulheres ciganas. ‘As viúvas estão vivas mas morreram’. Foi assim que o Jaír, um dos meus filhos, explicou a questão a um jornalista. É a tradição, compreende? Mas eles apoiaram-me, os três. Isso foi muito importante. Como eu costumo dizer, podemos ser quem quisermos, sem deixarmos de ser quem somos, sem abdicarmos da nossa cultura. Este é o desafio. Parece pouco mas não é. Nem para uma mulher-árvore, a quem nunca passou pela cabeça fazer sombra aos homens.
Sabe, nós as ciganas somos demasiado mães-galinha, levamos os filhos para todo o lado. A escola é a nossa saia, por assim dizer. A Sónia Matos, que também faz parte da associação e é auxiliar de acção educativa, acredita que, se mais ciganas começarem a deixar os filhos nos infantários, a relação com a escola poderá ser diferente. Eu concordo, até porque a venda ambulante, que tem sido o nosso principal meio de vida, não tem grande futuro, já se viu. Mas também é preciso que os professores e os outros pais percebam que a nossa cultura é especial. Os laços familiares são muito fortes e o luto é vivido de forma bastante intensa. Temos de nos conhecer todos melhor. E olhar para o exemplo espanhol. Deixe-me contar-lhe esta história. Uma mulher cigana casou-se aos 28 anos, depois de estudar Direito. Casou-se com um homem cigano, de acordo com a lei e toda a tradição cigana, mas primeiro formou-se. Hoje, marido e mulher trabalham em conjunto na câmara de Sevilha. Compreende onde quero chegar?”.

Olga Mariano, Fundadora da AMUCIP

João Paulo Baltazar
a partir de reportagem para a TSF “As passadas cautelosas das mulheres ciganas”, em Março de 2006

Javier Martinez
fotografias inéditas, 2010

13 de maio de 2012

semana 20
As facas de Nima

















As facas estão na mão dela. Não as aperta como se temesse perdê-las. Segura-as apenas. Pertencem-lhe por herança. Tem sobre elas absoluto domínio. Pousam na palma da sua mão aberta. É a ela, e só a ela, que cabe a decisão de as largar. Tem o poder de ficar com as facas mas também de decidir entregá-las.
Nima veste a cor do sangue em terra vermelha. E com a mesma cor envolve as facas num tecido fininho, para as proteger. Sagrado como tudo o que foi escapando às mudanças da história. Persistindo. Resistindo. Ficando. São-lhe demasiado importantes. Uma extensão de si. O seu utensílio profissional. O seu ganha-pão. É como se um cirurgião entregasse o bisturi. 
A sua pele esconde os anos que por ela já passaram, mas Nima já deve andar na casa dos 70. Pelas suas facas já passaram muitas meninas. Que Nima ouviu gritar e chorar, que viu espernear e prostrar. Que fez sangrar por achar que isso as tornaria melhores mulheres. Decentes, como as mães e as avós antes delas. Sofridas como é de uso. Submissas como é suposto.
Mas passaram muitas meninas e muitos anos por aquelas facas – e as facas também se cansam. E também têm dúvidas e até mudam de opinião. Foi o que aconteceu às de Nima. Afinal, meninas morreram, meninas sofreram, meninas não foram mais iguais, perderam o brilho do olhar e a vontade de sorrir. Aqui, na Guiné, mas também no resto do mundo, que estas facas têm irmãs em várias tabancas.
Chegou, então, a hora da reforma. O som dos tambores aumenta de volume. Os músculos dos homens do “djidiu” retesam-se a cada batucada e as veias parecem querer saltar-lhes dos braços. As facas deixam-se embalar por Nima, que lhes dedica uma última dança. Sempre entre as mãos – como abdicar daquela presença tão constante que lhe assegurava um lugar especial na comunidade? Devagar, portanto, Nima vai-se despedindo delas, sussurrando-lhes ao ouvido.
Há muita gente a ver, que canta, dança, atira os braços ao ar, soletra palavras imperceptíveis. São testemunhas do exemplo de Nima. Da sua diferença. Outras vão seguir-lhe, lentamente. Muitas não. Muitas ainda farão de conta que sim, mas voltarão às facas. Porque a elas estão habituadas. Ou simplesmente porque precisam de comer.
Nima curva-se agora, facas nas mãos, como há pouco se curvavam aqueles que por ela passavam, reconhecendo-lhe o estatuto de conhecedora das facas. Afinal, as suas mãos marcaram mulheres para sempre. Cortaram-nas. A sangue frio e a fundo. Mas isso foi no passado de Nima. Que tem direito a um futuro diferente.

Sofia Branco
inédita, Guiné-Bissau, 2009

Adriano Gomes
fotografias inéditas, 2010

6 de maio de 2012

semana 19
40 anos de terrorismo doméstico

“Tudo tinha de ser como ele queria. Tudo tinha de ser como ele dizia. E ele dizia que eu tinha toneladas de amantes. Era o homem da luz, era o homem do gás. Batia-me. Gritava: ‘Confessa!’ Eu tinha vergonha. As pessoas que me conheciam sabiam que eu não fazia o que ele dizia. E as outras?
Piorou com a idade. Piorou com o casamento dos filhos. No fim, já não havia intervalos. Quase todos os dias me batia. No ano em que saí de casa, no espaço de duas horas, deu-me três tareias.
Quando saíamos, ficava atento, como uma ave de rapina. Olhava para alguém? Alguém olhava para mim? Não era senhora de cruzar a porta de casa. Só podia sair uma vez por mês para ir ao hipermercado – com ele. Isolou-me por completo. Até nem o telefone me deixava atender.
Sempre que saía, regressava carregado de desconfiança. Punha-se a ver se havia pegadas perto das portas, perto das janelas. Eu tinha saído? Alguém tinha entrado? Não tinha sossego nem quando ele estava a trabalhar. Como trabalhava por conta própria, vinha a casa quando queria.
Sempre me dera dinheiro para gerir a casa. Deixou de o fazer. Dizia que eu o dava aos amantes. Se quisesse comprar um par de meias, tinha de lhe pedir. Para ir ao médico, os meus filhos tinham de se impor.
Fugi ao fim de 40 anos. Estou numa casa-abrigo a mais de 300 quilómetros de casa. Os meus filhos querem que eu vá para ao pé deles. Não posso, enquanto ele for vivo. Nem posso passar lá o Natal. Tenho medo que ele sonhe que estou lá. Se ele sonha, não há sossego. Alguma vez terei sossego?”.

Ana Cristina Pereira
a partir da reportagem em Portugal publicada no jornal Público, 13 de dezembro de 2009

Maria Kowalski
ilustração inédita, 2010

29 de abril de 2012

Semana 18
Três coisas impossíveis


























Desde pequena que Dina era grande. Aliás, Dicki. Dina era o nome da irmã mais velha. Mas o homem que tratou do passaporte fez confusão. Foi lá a casa receber dinheiro, para ir pedir a papelada e pagar os subornos. Como Dicki era a mais alta, ele pensou que ela era Dina, a filha mais velha. Pediu o visto em nome da Dina.
Quando a família se apercebeu do erro, era tarde. Dicki apresentou-se na fronteira como sendo Dina Ndembo.
Dicki nasceu em 1970, no Zaire, para onde os pais tinham fugido da guerra da independência em Angola. Sempre quis estudar Direito, mas não conseguiu, nem em Kinshasa nem em Luanda, onde, por causa da guerra civil, a universidade estava fechada. Por isso veio para Portugal, sozinha, em 1992. O objectivo era tirar o curso na Bélgica. Mas o tio, para casa de quem veio viver, não permitiu. Queria educá-la à moda antiga: não a deixava sair, batia-lhe.
Para se libertar, Dicki agora chamada Dina e com mais dois anos (fictícios) do BI, e 1m 86 (reais) de altura, foi trabalhar nas limpezas, no Prior velho. Começou a frequentar a igreja pentecostal e lá reencontrou um velho conhecido de Angola. Trabalhava nas obras e ajudava o pastor da Igreja. Era um homem baixinho, de quem ela nunca gostara. Mas como não tinha cá muitas amizades, aceitou a dele. Tornaram-se até confidentes. Ela contou-lhe coisas íntimas que nunca revelaria se soubesse o que ia acontecer: ele pediu-lhe namoro. Dina respondeu logo que não.
“É por eu ser baixinho?”, perguntou ele.
“Sim. Estás a ver como sabes a razão?”. Mais tarde, por pena, Dina aceitou. Mais tarde ainda, não sabe porquê, apaixonou-se de verdade.
Casaram e Dina foi fazer um curso de cabeleireiro. No fim, encontrou emprego na Póvoa de Santo Adrião. Entrava às 10 da manhã, saía às 10 da noite.
Era tão explorada que decidiu trabalhar sozinha. Comprou algum equipamento produtos de cabeleireiro, recebia em casa os clientes, que passavam palavra sobre a boa qualidade do serviço, e acorriam em número cada vez maior.
Dina especializou-se em cabelos africanos. Considerava o seu trabalho uma arte, inventava penteados consoante a personalidade da cliente.
Um dia, a Assembleia de Deus, a sua Igreja, lançou uma campanha com o título “Pedir a Deus três coisas impossíveis”. Dina pediu, número 1, que o marido se tornasse pastor na igreja; número 2, para abrir um salão de cabeleireiro; número 3, para ser missionária no Sudão.
Dias depois, estava a ler a Bíblia, quando teve uma premonição. Ligou a SIC. Estavam a falar do micro crédito. Informou-se. Fez um projecto de negócio e recebe 5000 euros. Em Fevereiro de 2005, arrendou um salão em Sacavém e começou a fazer publicidade, em panfletos que distribuía nas feiras e nos autocarros. A clientela aumentou e, no ano passado, mudou-se para um salão maior.
O marido é hoje pastor da Assembleia de Deus. Dina quer, dentro de alguns anos deixar o salão a um gerente e, com o marido e os filhos, partir para o Sudão.

Paulo Moura
história publicada em “Retratos: Dez anos de micro-crédito em Portugal”, ANDC, 2009

Valter Vinagre
fotografia publicada em “Retratos: Dez anos de micro-crédito em Portugal”, ANDC, 2009

22 de abril de 2012

Semana 17
Aristides, um “sempre-em-pé” que dá vida
e trabalho a cidadãos deficientes


Caminha como o “sempre-em-pé”, é manco ou “marreco”, como diz às crianças que o visitam. Elas riem, ele também. Os constrangimentos passam. Aristides Santos é um homem que emprega os da sua “raça”. Paralisia cerebral, amputados, esclerose múltipla, cegos. “Um autêntico supermercado”, graceja. Será que se pode brincar assim? Pode. Aristides faz jus à expressão “Coitadinho é corno”, aquela que usa quando lê pena nos olhos dos outros. Nos seus, há brilho. Afinal, este puto reguila de 47 anos, que anda a cavalo sem estribos, ouve nas vozes dos vizinhos: “Quero ser como o Aristides”.
Um martelo, uma mesa, três pessoas. Assim nasceu em Santa Maria da Feira, há 15 anos, a Deficiprodut, empresa de artigos feitos em pele por cidadãos deficientes. Hoje são mais de 60. “Ela vem para aqui e eu ensino-a a trabalhar. Sabe que sou de ideias fixas. Até logo”. Aristides desliga o telefone. Sim, ele é de ideias fixas. A poliomielite aos três meses e os ferros que lhe suportam as pernas nunca o fizeram parar. “Fui criado no meio dos ‘índios’, era igual a eles, se andavam a cavalo, eu andava a cavalo, se nadavam, eu nadava”, conta. Estudou contabilidade, montou um escritório. Sem clientes. Correu o Norte à procura deles. “Olhavam-me com pena, não como profissional. Ai é? Vou mostrar que sou bom”. Mostrou. Mas este “sempre-em-pé” tinha um sonho. Dar qualidade de vida a pessoas como ele. Fazer dos “mancos e marrecos” verdadeiros homens. “Aqui, ninguém está preocupado se é amputado ou surdo. Querem ganhar dinheiro e trabalhar. A empresa dá lucro e paga impostos, não é um santuário”. A missão social é o direito ao trabalho. “Querer é poder. É preciso acreditar. Eu acredito”.

Lúcia Crespo
texto e foto inéditos, 2010