11 de novembro de 2012

semana 46
Em Buba, uma escola feita de diálogo


“Chamo-me Alice Mariama Mané. Claro, mais conhecida por Néné. Tenho 45 anos e sou secretária executiva da organização não-governamental RA – Rede Ajuda, Cooperação e Desenvolvimento. A RA surgiu na região de Quínara, na cidade de Buba. Sabemos que a pobreza é mais notória no interior da Guiné-Bissau, recai sobretudo sobre as mulheres e as crianças, sem que o Governo tenha capacidade para apoiar essas pessoas.
Depois da independência, nunca mais nenhuma escola tinha sido construída na região de Quínara. A partir de 2002, conseguimos apoio para a construção de sete escolas. Cada escola tem cinco salas de aula: quatro para o ensino básico, uma para jardim-de-infância. Assim, aos três anos as crianças já conhecem as letras.
A ideia desta escola mista surgiu de uma visita que fiz ao Senegal. Encontrei centenas de crianças a pedir esmola na rua com latas velhas de polpa. Quando me dirigi a elas para lhes dar um pequeno apoio ouvi ‘obrigado’. Disse: ‘Meu Deus, obrigado se não é crioulo, é português’. Porque estava num país francófono, esperava ouvir francês ou wolof.
Perguntei: ‘Parece que falou obrigado. Onde estão os teus pais?’
Escutei: ‘Vim com um grupo de senhores. Os meus pais são da Guiné, mas não os conheço’. Isso despertou-me a atenção para os meninos talibé que vão para o Senegal ou para a Gâmbia estudar o Alcorão. Normalmente, essas crianças são do leste do país. Os pais sentem-se honrados em enviar os meninos para fora. Mas muitos não conseguem estudar. São obrigados por alguns mestres corânicos a apanhar lenha às cinco da manhã. Às sete já estão na rua, com uma caneca na mão, para pedir esmola.
À noite, à luz da figueira, lêem um bocadinho as tábuas. Não têm tempo para aprender. Então: eu sei fazer as orações islâmicas e sei também rezar o Pai-nosso. Fiz os meus estudos com as freiras e tenho essa parte mista. A parte mista que tenho é que me levou a perguntar: ‘Por que não uma escola que seja ao mesmo tempo madrassa e oficial?
A nossa escola, aqui em Buba, é muito procurada. Todas as crianças matriculadas na escola madrassa, no período da tarde, frequentam também o ensino oficial, na parte da manhã. Sensibilizamos também para que deixem as meninas ir para a escola. Agora já estamos com falta de salas.
Não há nenhum mistério. É possível. Eu sou exemplo vivo”.

Alice Mariana Mané, Directora da Rede Ajuda

Paulo Nuno Vicente
a partir da entrevista para o documentário “Construir o Paraíso Aqui”, ACEP, 2009
fotografia inédita, 2009

4 de novembro de 2012

semana 45
Íamos só aprender a ler


– Fui levado por eles… depois mandaram-me pedir nas ruas. Fui, mas não consegui dinheiro. Aruna só foi menino até aos seis anos; agora é talibé, de taliban.
Seguro-lhe a mão fria mas suada, a mesma que tantas vezes usou para se proteger.
– Bateram-me muito e fiquei inconsciente. Quando acordei, fugi e fui pedir ajuda.
Os olhos estão agora cravados na linha que desenhou com o pé na terra vermelha de Bafatá. É como se a vergonha fosse sua. Talvez porque ele acha tudo em nada; talvez porque eu não acho nada em tudo. E se as esperas e desejos de uma criança não se estendem para além de cinco minutos, Aruna esperou quatro anos.
São conhecidos como os “Meninos Talibés”. Crianças levadas das tabancas (aldeias da Guiné-Bissau), para estudarem nas Madrassas, as escolas corânicas, mas que acabam nas redes de tráfico. Levadas para outros países, aí são sujeitas a trabalhos forçados, à mendicidade e à exploração sexual.
Malan é um muçulmano guineense que luta contra os falsos mestres corânicos. Com a ONG que fundou, a “SOS – Crianças Talibé”, já recuperou mil e duzentas crianças. É ele quem me leva numa viagem impressionante até à aldeia de Maimuna, Ramatulai e Tulai. Têm agora entre onze e catorze anos e estiveram fechadas num quarto durante oito anos sujeitas a violações constantes. Só foram libertadas porque estão grávidas e perderam o valor comercial. O Régulo autoriza-me a entrevistá-las.
— Maimuna, não tenhas medo, conta-me o que te fizeram.
— Levaram-me com eles para o Senegal. Queria aprender a ler e a escrever. Ele perguntou-me se tinha mais alguma amiga que também quisesse estudar. Disse-lhe que sim.
— Ramatulai, o que te aconteceu lá no Senegal?
— Levaram-nos e fomos fechadas num quarto. Íamos apenas para aprender a ler…
— E tu, Tulai, o que sentes agora?
— Feliz, mas quero aprender a ler.
O desejo de Tulai é o mesmo de Ramatulai e de Maimuna, mas não serão obedecidos. As famílias fogem da vergonha e vão sujeitá-las a casamentos forçados nos próximos meses.
Estou a preparar as malas para voltar a Lisboa quando sinto que um carro pára à porta da delegação da RTP África, em Bissau, e alguém grita:
— Conseguimos! Conseguimos duas vitórias!
É o professor muçulmano que corre para mim de braços abertos.
— O Aruna encontrou a família graças à tua reportagem! Quanto às meninas, uma ONG internacional garantiu alimentação e cuidados médicos para elas até darem à luz.
Malan levanta as mãos ao céu e agradece com sonoros “Allahu akbar!”, Deus é grande.
Mais tarde quis saber o que lhes acontecera.
Aruna vive actualmente com os pais nos arredores de Bissau; Ramatulai teve uma menina; Maimuna abortou ao quinto mês e Tulai não se adaptou e fugiu para o Senegal. Talvez para evitar o casamento e aprender a ler. Ninguém mais a viu.
Actualmente há mais de cem mil crianças da África Ocidental ainda nas mãos dos traficantes.

Luís Castro
a partir de reportagem para a RTP, na Guiné-Bissau, 2008
ilustração a partir de frame da reportagem para a RTP, 2010

28 de outubro de 2012

semana 44
Uma fábrica de feijão verde contra a sida


A Frigoken, criada em 1989 nos arredores de Nairobi (Quénia) para exportar vegetais frescos para a Europa, é uma fábrica que dá prioridade ao emprego a mulheres e que se preocupa com a sida. Ali, embala-se feijão verde, exportado para vários países europeus (incluindo Portugal, onde é vendido pela F. Leclerc).
A empresa começou por contratar a compra de feijão a 50 agricultores. Hoje, são 45 mil, em todo o país. A perspectiva é chegar aos 100 mil. Na fábrica, trabalham três mil pessoas – quase todas mulheres –, além de mais 800 funcionários distribuídos pelos centros de recolha. A prioridade às mulheres tem razão de ser, mesmo se alguns homens não gostam de vê-las trabalhar. “A mulher empregada significa um suplemento no rendimento familiar. Com esse dinheiro, cresce a qualidade de vida das famílias”, diz Karim Dostmohamed, responsável da empresa.
“Elas são mais responsáveis que os maridos a utilizar o dinheiro”, acrescenta Jim Garnett, responsável operacional e um dos dois únicos estrangeiros da empresa.
Enquanto vigia o processo de embalagem, Anne Malika, 36 anos, mãe solteira de um filho, confirma que os doze anos na empresa lhe deram “estabilidade de vida”. Tabitha Khamala, 35 anos e três filhos, é analista de qualidade. Quando começou na Frigoken, há dez anos, era ainda solteira. “Agora sou casada e capaz de tomar conta da família. Consigo pagar a escola dos meus filhos. Fui privilegiada por poder usar a creche da fábrica para o mais novo. Quando ele saiu, a professora disse que ele estava avançado e pô-lo logo na classe seguinte”.
Através das mulheres, passam outras mensagens: regras de higiene e segurança alimentar repetidas são apreendidas, reproduzidas e levadas para casa. A empresa promove também um programa contra o VIH/sida. “Fazemos visitas ao campo para falar aos agricultores, com especialistas, médicos e enfermeiros, pessoas de organizações especializadas e mesmo alguns portadores de VIH. O objectivo é remover o estigma”, esclarece Garnett.
Para completar esse processo, com a colaboração de uma organização católica, a empresa promove, cada seis meses, testes gratuitos de despistagem da doença a quem os queira fazer. “Só conhecemos os números”.

António Marujo
a partir de reportagem publicada no jornal Público, realizada a convite da rede Aga Khan para o Desenvolvimento, 8 de Julho de 2008

António Marujo e Faranaz Keshavjee
fotografias inéditas, 2008

21 de outubro de 2012

semana 43
Hoje é dia de festa: meu filho é são!


No Centro DREAM de Matola 2, na periferia de Maputo, passaram milhares de mães nos primeiros cinco anos da sua actividade: 98 por cento delas não transmitiu o vírus do VIH aos seus bebés. A cada dia repete-se a luta contra o estigma e contra o preconceito. Para uma qualidade de vida melhor. A oferta da terapia anti-retroviral, com o objectivo de as tratar também depois do parto, a educação sanitária, a amizade, é elemento fundamental para as mulheres. Para poderem ser mães em saúde de bebés sãos.
“Meu filho é são! Hoje fez o teste final porque completou 18 meses e o resultado é negativo!”. Fátima quase não acredita que Manuel, o filho tão desejado, não foi contaminado pelo vírus que há seis anos entrou dentro dela.
“Meu marido não quis vir porque tinha medo do resultado. ‘Va’ tu porque eu não consigo. Tenho medo de desmaiar”, conta-nos esta jovem mulher de 28 anos.
“Fiz o teste HIV depois que o meu marido descobriu ser seropisitivo. Estava muito mal, era um esqueleto: com 44 anos pesava 28 quilos. Nem podia ir trabalhar. Eu não me sentia mal, mas decidi fazer o teste na mesma. Fui ao Centro DREAM de Machava, e logo tive que começar tomar os antiretrovirais. Desde então nunca mais parei”, diz ela enquanto Manuel bebe um sumo.
“E devo dizer que nunca tenho tido problemas. A única coisa bela, a mais bela que me pudesse acontecer, é que fiquei grávida! Até o médico não acreditava. E a barriga começou a crescer e finalmente tinha a prova que não era um sonho. Obviamente a preocupação que o meu filho pudesse nascer seropositivo estava sempre presente. Hoje é o dia mais bonito da minha vida!”, diz-nos chorando de felicidade.
Fátima está consciente de ser uma privilegiada e hoje é uma activista, no seu bairro: um exemplo para as mil mulheres grávidas que neste momento estão a ser seguidas é o elo de ligação entre as mulheres grávidas e o tratamento antiretroviral. Ela leva-as para Matola 2. “Para fazer nascer crianças sãs, como o meu Manuel!”.
Fátima é uma das milhares de mulheres que desde 2003 têm sido assistidas no centro DREAM da Matola 2, no programa de prevenção vertical com a tri-terapia, um programa desenhado e implementado pela Comunidade de Sant’ Egídio em Moçambique em 2002, no âmbito das políticas contra o VIH/SIDA do Governo de Moçambique.
O DREAM privilegia as mulheres grávidas e a dupla mãe-filho porque é a escolha para o futuro de África. No Centro as mulheres aprendem que os bebés de mães seropositivas podem ficar infectados de três maneiras: o vírus pode-se transmitir durante a gravidez, no momento do parto e através da amamentação. Sem nenhuma forma de prevenção, existem 30 por cento de possibilidades que uma mãe infectada possa passar o vírus ao seu bebé.
A oferta da tri-terapia anti-retroviral a partir da vigésima-quinta semana de gravidez até ao exto mês depois do parto para poderem amamentar sem risco e tratá-las também depois do parto, é fundamental. A única maneira para prevenir o aumento exponencial de órfãos.

Paola Rolletta
história inédita, 2009

Isabel Ballena
fotografia inédita, 2009

14 de outubro de 2012

7 de outubro de 2012

semana 41
Quanto vale uma torneira?


Em Qena, no Sul do Egipto, há uma mulher com um tesouro para revelar. Quando se entra em sua casa, aponta para a torneira como quem mostra um quadro de Picasso, porque esta torneira mudou a sua vida. As filhas deixaram de andar quilómetros todos os dias para ir buscar água e passaram a ir à escola.
Catarina Albuquerque, perita independente da ONU para o direito à água, não se esquece desta mulher. A torneira foi financiada pela UNICEF e a família ficou a pagar um ou dois dólares de prestação, durante 24 meses. “Podem não ter dinheiro para comprar muita comida, mas de certeza que vão pagar a torneira”. Continuava sem haver casa de banho, mas pelo menos a torneira já trazia água para beber e cozinhar.
Para além do Egipto, Catarina Albuquerque visitou a Costa Rica, Bangladesh, Eslovénia e Japão, a preparar relatórios para a ONU sobre o acesso à água e ao saneamento. Desde 2008, quando começou o seu mandato, esta jurista tem defendido que a água é um direito humano consagrado, tal como o direito à habitação à alimentação. “É impossível ter acesso a um nível de vida adequado sem água ou saneamento”.
A Assembleia Geral da ONU aprovou em Julho de 2010, por 122 votos a favor e 41 abstenções, uma resolução em que considera o acesso à água e ao saneamento um direito fundamental, mas pela frente há ainda um longo caminho. Todos os anos morrem 1,5 milhões de crianças com menos de cinco anos por doenças relacionadas com a falta de água potável, há 884 milhões de pessoas com difícil acesso a água e 2600 milhões que não têm condições de saneamento, o que significa 39 por cento da população mundial. A cada 20 segundos morre uma criança por falta de saneamento ou água potável.
Catarina Albuquerque espera que a resolução da ONU ajude a não deixar esquecer este direito. Durante a sua missão já enviou dezenas de cartas a pedir para visitar países de várias latitudes, porque a falta de acesso à água não é só um problema de África. Na Eslovénia, por exemplo, viu as comunidades ciganas a caminhar durante duas horas para conseguir água potável. E no relatório que há-de apresentar em Outubro de 2011 falará dos muitos obstáculos que encontrou e de algumas boas práticas, como a torneira de Qena ou as instalações sanitárias que custam apenas um dólar e alguma imaginação.

Isabel Gorjão Santos
história inédita, 2010

Gonçalo Cunha de Sá
fotografia inédita, 2010

30 de setembro de 2012

semana 40
Hameeda num conflito de terra e de água


Hameeda é uma jovem sudanesa que vive refugiada no Leste do Chade.
A sua aldeia, como muitas outras no Darfur, foi atacada repetidamente, em 2006, por homens armados, identificados com as tribos de nómadas. No passado, os choques entre as populações nómadas e os agricultores ocorriam esporadicamente, quando as manadas de uns danificavam as culturas dos outros. Mecanismos ancestrais permitiam às partes chegar a acordos de compensação.
A guerra civil no Darfur, em que a desertificação e a pressão sobre os recursos naturais, a terra e a água, também foram factores de conflito, veio radicalizar a relação entre as comunidades. Os nómadas, em virtude da sua aliança táctica com o regime em Cartum, sentiram-se com um novo alento para atacar os agricultores. Face à violência, muitos agricultores acabaram por procurar protecção nos campos de deslocados, no interior do próprio Sudão. Outros, fugiram para o Chade. Tornaram-se refugiados.
Assim aconteceu com Hameeda e a sua família. Desde criança, fora habituada a tratar dos campos e dos animais domésticos, a ir à lenha e à água. Assim aprendeu a ser mulher e a cuidar da sua vida. Hoje, é mais uma refugiada, vítima de guerra civil, assistida pela comunidade internacional. Não perdeu, todavia, nem a dignidade nem a esperança de regressar à sua terra.

Victor Ângelo
história e foto inéditas, 2010