“Será que o Islão pede para se proteger a mulher? E será que a mulher deve ser protegida do Islão – quando o Islão se torna fundamentalista, estreito, exíguo, reaccionário – e de si própria? A questão da ‘burqa’ na Europa é uma falsa questão. É recente: tem apenas dez anos. Mas o Islão tem catorze! Como todas as modas, é passageira e perigosa, por ser reactiva. Uma mulher que coloca a ‘burqa’ não reage em relação ao Islão mas ao lugar do Islão no Ocidente ou ao lugar dela no seio da família que pretende construir. Eu passei dez anos a traduzir o Corão e conheço-o como as minhas mãos. Posso dizer que a palavra ‘burqa’ não existe uma única vez no livro. Nem ‘niqab’, que é o pequeno tecido com que se cobre o rosto. Existe o termo ‘djilbab’, ‘véu’. ‘Djilbab’ é um termo polissémico: pode significar paravento, ou algo escondido, ou algo com que podemos esconder-nos. A semântica é de protecção, não de imposição. Pode até ser um sinal de distinção. O que acontece é que estamos hoje num Islão regressivo que impõe o véu à mulher. O próprio termo ‘djilbab’ usado pelo Corão, no século VII, já não existe. Quando traduzi o Corão, tive que ir procurar em dicionários medievais o significado da palavra. ‘Djilbab’ desapareceu do árabe moderno mas eis que as pessoas o usam hoje como significando o véu da mulher, o que é um abuso de significado. Há uma dezena de palavras para traduzir ‘véu’ em francês e o Corão só usa um: ‘hijab’, que é ‘protecção’, ‘estar protegido do sol’, por exemplo, e não sabemos se significa écharpe, xaile, mantilha, ‘niqab’.
Na realidade, não é o Islão que está em causa mas a situação dos muçulmanos no Ocidente, na Europa, em França. Essa questão continua por resolver. São questões fundamentais da nossa modernidade. O Islão mete medo e compreendo porquê: é uma religião jovem, dinâmica, uma religião de futuro. Tem uma vitalidade que falta às grandes religiões. Sobretudo, o Islão converte por todo o mundo de forma pacífica, sem coacção. Em França, são sobretudo mulheres convertidas (e apenas umas centenas!) que colocam o véu integral. Isso amedronta. Mas perante o medo é preciso reflectir e dialogar. Questionar o que aconteceu para se chegar aqui: porque vemos hoje a ‘burqa’ nas cidades europeias? O problema é também no interior do Islão e não um problema das mulheres. Se as mulheres são regressivas, se não têm o seu lugar, é porque os homens também o são. A condição feminina não pode ser considerada isoladamente. A condição da mulher vai a par com a condição masculina. O desafio é conseguir um lugar para a mulher não em termos de espaço religioso mas num espaço de cidadania. A abolição da ‘burqa’ do espaço público convém-me perfeitamente mas o método não é bom. A proibição não resolve as questões de fundo que são as questões da nossa modernidade”.
Malek Chebel, antropólogo e tradutor
Pedro Rosa Mendes
a partir de entrevista para a Lusa em Agosto de 2010
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