25 de março de 2012

Semana 13
Presa ao Kosovo



O que é feito de Maria? Chamo-lhe assim porque não lhe posso dar o nome verdadeiro e este é o mais português que há. Da última vez que a vi, em 2007, vivia numa mísera aldeia do Kosovo há oito anos, presa à casa dos sogros por amor dos filhos. Conhecera o marido na Alemanha, para onde emigrara do seu Trás-os-Montes natal em busca de alguma sorte e bulício, e acabara apaixonada – que raio de sorte! – por um albanês, imigrante como ela mas ilegal, que vivia do jogo e de fazer segurança. Havia uma grande foto dele, na sala quarto da casinha dos sogros: bonito e vistoso, com um chapéu branco de “gangster” americano. Maria tinha 18 anos, ele prometeu-lhe casamento. Acabou nesse estranho Kosovo, que para ela se resumiu à aldeia do marido, em boa verdade um aglomerado de casas pobres e tristes entre ruas poeirentas, cercadas de altos muros em tijolo, como é costume albanês. Em oito anos, veio uma vez a Portugal ter o segundo filho e, sobretudo, renovar os documentos. Foi à pala do casamento que ele pôde legalizar-se na Alemanha, para onde voltou. Ficou-lhe com o passaporte e, depois de saber que havia militares portugueses no Kosovo, mandou tirar-lhe o telemóvel. Nunca mais soube dele – lá de onde ele esteja telefona de vez em quando aos pais. Vive do que estes lhes dão, que é quase nada, porque ele dinheiro não manda. Sai da aldeia para a vilória próxima apenas para visitar (com o sogro) a avó albanesa. A Pristina foi uma vez, ao hospital, acompanhar a sogra. É isso que ela faz, tomar conta deles. Há três anos, queria vir-se embora, farta de miséria e atraso. Os filhos prendem-na. E agora, onde estará?

Luísa Meireles
a partir de reportagem publicada no jornal Expresso

António Pedro Ferreira
foto publicada no jornal Expresso

18 de março de 2012

semana 12
Maria Eugénia, a redeira que conquistou
o direito a descontar


No Inverno, a peúga calçava o pé e o saco de plástico protegia a cabeça. No Verão, o sol escurecia a perna direita. No chão de Peniche ou a bordo das traineiras com cheiro a sardinha. Na Gaivota Branca, no barco Fruto da Liberdade. Maria Eugénia recorda. Senta-se no chão da casa, perna direita traçada sobre a esquerda, prende a rede no dedo grande do pé, dá laçadas com uma agulha muito grossa. Redeira há 58 anos, esta mulher encorpada desemaranhou fios, coseu linhas para agarrar carapaus e uma reforma futura. Sacudiu o mundo dos homens, disse que também queria. O direito a descontar. O direito à Segurança Social. Conseguiu.
Maria Eugénia, quarta classe, filha de pescador, mal esperou pelo 25 de Abril de 1974. Redeira desde os 10 anos, partilhava o ofício com 60 mulheres de Peniche. Abraçou as colegas, as 30 que quiseram, e rumou ao mundo dos sindicatos e das cooperativas de pescadores, que floresciam por ali. O mulherio ficou dividido em dois grupos, sindicalizadas para um lado, não sindicalizadas para outro. “Nós e elas”. Hoje restam cinco de cada lado. “Ainda há zangas”. Maria Eugénia ri.
Vinha o mestre da traineira. Olhava para elas. Elas para ele. Mãos à espera de emendar redes. De ganhar o dia. Maria Eugénia ficou de fora várias vezes. Os “patrões das privadas” não gostavam de mulheres sindicalizadas, então “salvas” pelas embarcações das cooperativas. Palavras de uma redeira que tem hoje uma reforma mensal de 370 euros. Não é muito, mas é seu por direito. Um direito conquistado. “Não é, meu amor?”.
Amor é o marido, conheceu-o num armazém de pesca. Casaram vai fazer 50 anos. Ele faz barcos de madeira, ela conserta bocados de rede. Ele usa-as nas miniaturas. Ela fica contente. A conversa termina, Maria Eugénia fica, sentada no chão, perna direita traçada sobre a esquerda.

Lúcia Crespo
história e foto inéditas, 2010

11 de março de 2012

semana 11
Filomena, a rebelde

Numa esquina do caótico cruzamento do bairro de Caracol com a estrada de Bor, nos subúrbios próximos da capital guineense, Filomena Quessin, uma rapariga da etnia balanta, a mais numerosa da Guiné-Bissau, improvisou o seu modesto negócio. Estuda de manhã e à tarde vende donetes, saquinhos de água fresca e sorvetes de “cabaceira”* a quem procura algo para atenuar o sufocante calor da época das chuvas. Filomena leva esta vida há pouco mais de um ano, desde que veio de Bessassema de Baixo, uma aldeola da remota região meridional de Quínara. Deixou Bessassema, onde não há luz eléctrica nem água canalizada, para escapar ao “beguima uiné lanté”, a prática ancestral de dar as meninas em casamento contra a sua vontade. Quando viu os familiares a prepararem a farinha de milho, que antecede as cerimónias nupciais, aproveitou a escuridão e abandonou a casa, na companhia de uma conterrânea, numa fuga a um destino comum. Aceitar o marido imposto pelo pai equivalia a sujeitar-se à maternidade precoce, a ficar presa às lides domésticas e a renunciar à escola. Caso contrário, teria de sofrer a maldição paterna e a separação dos seus. Era quase uma questão de vida ou morte. Protestante convicta e determinada a instruir-se, optou pela liberdade e refugiou-se nas instalações da Igreja Evangélica em Bissau, porto de abrigo de cerca de duas dezenas de jovens em idêntica situação. Dois anos depois, o progenitor, que jurou matá-la pela afronta, acabou por perdoá-la e reconciliaram-se. Mas a reaproximação não foi fácil. Só foi possível depois do pai ter feito uma cerimónia sagrada, que na crença animista local, tem o poder de anular um sortilégio lançado contra a filha, e que podia virar-se contra si, por ter faltado à palavra dada.

*Fruto de uma árvore silvestre, conhecida também por bao bao. Em Angola é chamada imbondeiro

Fernando Jorge
texto inédito, 2010

Marta Jorge
fotografia inédita, 2010

4 de março de 2012

semana 10
Os três mosqueteiros de Bulenga



Patrick traz a fruta na mão. William, o saco de arroz. Sam, o feijão. E ervas para o chá, quando o feijão e o arroz se esgotam no orfanato. Patrick, William e Sam chegaram sozinhos à idade dos vinte. Na terra-berço do Nilo, a cada 12 segundos, há uma pessoa que morre de sida. Para trás, o vírus deixa milhões de meninos órfãos.
E lá vão eles, Patrick, William e Sam. Apressados. Saem, de novo, para os trilhos das bananeiras que refrescam a terra vermelha de Bulenga, encharcada de calor. Ali, no cruzamento, procuram uma “boda-boda” ou uma “matatu”. De mota ou carrinha pão-de-forma, chegam em 20 minutos ao ghetto de Kampala, assim baptizado pelo músico Bobby Wine. Aqui, ele é o senhor Ghetto President.
Cola-se à pele um cenário de cores de chumbo. Debaixo deste telhado de fome caminham muitas crianças. E dormem quase invisíveis por entre chapas de zinco e caixas de cartão, que fazem a vez de cama. Apertada. A sujidade e as doenças também são inquilinos. Também há uma amostra de ribeira. Fétida. Este canal serve para lavar roupa, urinar e beber água. Há abusos e desconfiança entre estes meninos e meninas que enfiam o nariz num saco de plástico com cola. Aqui cheira a esquecimento.
Outras crianças rezam ajoelhadas no chão. Rezam como quem agradece. Hoje, Patrick, William e Sam conseguiram juntar xelins e trazer alimento. Um saco com papa de farinha e feijão. Outro saco com água. É o primeiro aconchego do estômago em muitos dias de jejum. Aqui também há filhos da guerra, no Norte do Uganda. Um grupo de rebeldes é comandado pela loucura de um homem. Joseph Kony diz combater em nome de Deus e rapta crianças que transforma em soldados.São meninos que ou matam ou morrem. No ghetto de Kampala moram vidas – ainda curtas – que escaparam à tortura. Patrick, William e Sam têm casa para dar a alguns.
Não usam capa nem espadas. Nunca ouviram falar de Athos, Portos ou Aramis. Mas são tão ou mais inseparáveis. Até já têm nome de grupo: “Raising Up Hope for Uganda”.
Hoje, os três mosqueteiros regressam a Bulenga com mais uma criança. Estão ali 40. Já se ouvem os gritos das brincadeiras.
O menino sufoca o galo num abraço. Aquela menina lava o vestido no alguidar. Outro menino desenha na folha gasta à sombra do muro inacabado. Esta menina já dá mama ao bebé. E este menino chupa cana-de-açúcar, doce como a jaca que entra pelo portão de ferro do orfanato. Patrick traz fruta na mão.

Rita Colaço
a partir da reportagem realizada para a Antena 1, em Maio de 2009

João Maio Pinto
Ilustração inédita, 2010