27 de maio de 2012

semana 22
Um lar contra a intolerância

Quando chegar a sua vez, Nora Mülhpforte, 82 anos, em parte vividos num palco, quer passar aqui os seus últimos dias. “Quando já não puder dançar”, sublinha, coquete, a velha profissional de danças de salão que inaugurou em Berlim o primeiro lar europeu para lésbicas e gays com um sentido tango argentino.
Nora tem uma dessas biografias não lineares que dificultam a integração num lar tradicional onde se folheiam álbuns fotográficos durante a semana, e aos domingos e feriados se espera a visita dos netos e afilhados. Num outro tempo, foi casada e teve dois filhos, mas depois da morte do marido, em 1955, Nora descobriu o amor pelas mulheres. “Eu sou uma mulher que ama mulheres”. E agora, que perde a independência, não quer ter de omitir a sua história.
A opção de Nora não é pacífica. Cansada de responder eternamente às mesmas perguntas, e explicar que a sua companheira, Gabi Stiller, 20 anos mais nova, não é sua filha, Nora vê- -se agora também atacada por membros da comunidade gay que receiam as consequências
de “soluções segregacionistas” e a destruição de décadas de trabalho em prol da integração, com a abertura de um “parque temático”.
Sem paciência nem energia para se defender e justificar mais uma vez, a velha dançarina, que optou por viver fora do compasso, apenas tem um desejo: poder viver num lar onde a vida continue como era antes. Viver e deixar viver.

Lina de Lonet Delgado
a partir da reportagem publicada no jornal Expresso/Única, 28 de Dezembro de 2008

Marcel Steger
publicado no Expresso/Única, 28 de Dezembro de 2008

20 de maio de 2012

semana 21
Sem sombra de pecado

“Chamo-me Olga Mariano. Sou uma mulher-árvore. Orgulhosa das minhas raízes e dos frutos que vão nascendo dos meus braços solidários. Trabalho para ajudar as outras mulheres e sobretudo as crianças. Sou uma mediadora sociocultural. Por ser mulher e, particularmente, por ser viúva, enfrentei muitas resistências para formar a AMUCIP, a primeira associação portuguesa de mulheres ciganas. ‘As viúvas estão vivas mas morreram’. Foi assim que o Jaír, um dos meus filhos, explicou a questão a um jornalista. É a tradição, compreende? Mas eles apoiaram-me, os três. Isso foi muito importante. Como eu costumo dizer, podemos ser quem quisermos, sem deixarmos de ser quem somos, sem abdicarmos da nossa cultura. Este é o desafio. Parece pouco mas não é. Nem para uma mulher-árvore, a quem nunca passou pela cabeça fazer sombra aos homens.
Sabe, nós as ciganas somos demasiado mães-galinha, levamos os filhos para todo o lado. A escola é a nossa saia, por assim dizer. A Sónia Matos, que também faz parte da associação e é auxiliar de acção educativa, acredita que, se mais ciganas começarem a deixar os filhos nos infantários, a relação com a escola poderá ser diferente. Eu concordo, até porque a venda ambulante, que tem sido o nosso principal meio de vida, não tem grande futuro, já se viu. Mas também é preciso que os professores e os outros pais percebam que a nossa cultura é especial. Os laços familiares são muito fortes e o luto é vivido de forma bastante intensa. Temos de nos conhecer todos melhor. E olhar para o exemplo espanhol. Deixe-me contar-lhe esta história. Uma mulher cigana casou-se aos 28 anos, depois de estudar Direito. Casou-se com um homem cigano, de acordo com a lei e toda a tradição cigana, mas primeiro formou-se. Hoje, marido e mulher trabalham em conjunto na câmara de Sevilha. Compreende onde quero chegar?”.

Olga Mariano, Fundadora da AMUCIP

João Paulo Baltazar
a partir de reportagem para a TSF “As passadas cautelosas das mulheres ciganas”, em Março de 2006

Javier Martinez
fotografias inéditas, 2010

13 de maio de 2012

semana 20
As facas de Nima

















As facas estão na mão dela. Não as aperta como se temesse perdê-las. Segura-as apenas. Pertencem-lhe por herança. Tem sobre elas absoluto domínio. Pousam na palma da sua mão aberta. É a ela, e só a ela, que cabe a decisão de as largar. Tem o poder de ficar com as facas mas também de decidir entregá-las.
Nima veste a cor do sangue em terra vermelha. E com a mesma cor envolve as facas num tecido fininho, para as proteger. Sagrado como tudo o que foi escapando às mudanças da história. Persistindo. Resistindo. Ficando. São-lhe demasiado importantes. Uma extensão de si. O seu utensílio profissional. O seu ganha-pão. É como se um cirurgião entregasse o bisturi. 
A sua pele esconde os anos que por ela já passaram, mas Nima já deve andar na casa dos 70. Pelas suas facas já passaram muitas meninas. Que Nima ouviu gritar e chorar, que viu espernear e prostrar. Que fez sangrar por achar que isso as tornaria melhores mulheres. Decentes, como as mães e as avós antes delas. Sofridas como é de uso. Submissas como é suposto.
Mas passaram muitas meninas e muitos anos por aquelas facas – e as facas também se cansam. E também têm dúvidas e até mudam de opinião. Foi o que aconteceu às de Nima. Afinal, meninas morreram, meninas sofreram, meninas não foram mais iguais, perderam o brilho do olhar e a vontade de sorrir. Aqui, na Guiné, mas também no resto do mundo, que estas facas têm irmãs em várias tabancas.
Chegou, então, a hora da reforma. O som dos tambores aumenta de volume. Os músculos dos homens do “djidiu” retesam-se a cada batucada e as veias parecem querer saltar-lhes dos braços. As facas deixam-se embalar por Nima, que lhes dedica uma última dança. Sempre entre as mãos – como abdicar daquela presença tão constante que lhe assegurava um lugar especial na comunidade? Devagar, portanto, Nima vai-se despedindo delas, sussurrando-lhes ao ouvido.
Há muita gente a ver, que canta, dança, atira os braços ao ar, soletra palavras imperceptíveis. São testemunhas do exemplo de Nima. Da sua diferença. Outras vão seguir-lhe, lentamente. Muitas não. Muitas ainda farão de conta que sim, mas voltarão às facas. Porque a elas estão habituadas. Ou simplesmente porque precisam de comer.
Nima curva-se agora, facas nas mãos, como há pouco se curvavam aqueles que por ela passavam, reconhecendo-lhe o estatuto de conhecedora das facas. Afinal, as suas mãos marcaram mulheres para sempre. Cortaram-nas. A sangue frio e a fundo. Mas isso foi no passado de Nima. Que tem direito a um futuro diferente.

Sofia Branco
inédita, Guiné-Bissau, 2009

Adriano Gomes
fotografias inéditas, 2010

6 de maio de 2012

semana 19
40 anos de terrorismo doméstico

“Tudo tinha de ser como ele queria. Tudo tinha de ser como ele dizia. E ele dizia que eu tinha toneladas de amantes. Era o homem da luz, era o homem do gás. Batia-me. Gritava: ‘Confessa!’ Eu tinha vergonha. As pessoas que me conheciam sabiam que eu não fazia o que ele dizia. E as outras?
Piorou com a idade. Piorou com o casamento dos filhos. No fim, já não havia intervalos. Quase todos os dias me batia. No ano em que saí de casa, no espaço de duas horas, deu-me três tareias.
Quando saíamos, ficava atento, como uma ave de rapina. Olhava para alguém? Alguém olhava para mim? Não era senhora de cruzar a porta de casa. Só podia sair uma vez por mês para ir ao hipermercado – com ele. Isolou-me por completo. Até nem o telefone me deixava atender.
Sempre que saía, regressava carregado de desconfiança. Punha-se a ver se havia pegadas perto das portas, perto das janelas. Eu tinha saído? Alguém tinha entrado? Não tinha sossego nem quando ele estava a trabalhar. Como trabalhava por conta própria, vinha a casa quando queria.
Sempre me dera dinheiro para gerir a casa. Deixou de o fazer. Dizia que eu o dava aos amantes. Se quisesse comprar um par de meias, tinha de lhe pedir. Para ir ao médico, os meus filhos tinham de se impor.
Fugi ao fim de 40 anos. Estou numa casa-abrigo a mais de 300 quilómetros de casa. Os meus filhos querem que eu vá para ao pé deles. Não posso, enquanto ele for vivo. Nem posso passar lá o Natal. Tenho medo que ele sonhe que estou lá. Se ele sonha, não há sossego. Alguma vez terei sossego?”.

Ana Cristina Pereira
a partir da reportagem em Portugal publicada no jornal Público, 13 de dezembro de 2009

Maria Kowalski
ilustração inédita, 2010