“Tudo tinha de ser como ele queria. Tudo tinha de ser como ele dizia. E ele dizia que eu tinha toneladas de amantes. Era o homem da luz, era o homem do gás. Batia-me. Gritava: ‘Confessa!’ Eu tinha vergonha. As pessoas que me conheciam sabiam que eu não fazia o que ele dizia. E as outras?
Piorou com a idade. Piorou com o casamento dos filhos. No fim, já não havia intervalos. Quase todos os dias me batia. No ano em que saí de casa, no espaço de duas horas, deu-me três tareias.
Quando saíamos, ficava atento, como uma ave de rapina. Olhava para alguém? Alguém olhava para mim? Não era senhora de cruzar a porta de casa. Só podia sair uma vez por mês para ir ao hipermercado – com ele. Isolou-me por completo. Até nem o telefone me deixava atender.
Sempre que saía, regressava carregado de desconfiança. Punha-se a ver se havia pegadas perto das portas, perto das janelas. Eu tinha saído? Alguém tinha entrado? Não tinha sossego nem quando ele estava a trabalhar. Como trabalhava por conta própria, vinha a casa quando queria.
Sempre me dera dinheiro para gerir a casa. Deixou de o fazer. Dizia que eu o dava aos amantes. Se quisesse comprar um par de meias, tinha de lhe pedir. Para ir ao médico, os meus filhos tinham de se impor.
Fugi ao fim de 40 anos. Estou numa casa-abrigo a mais de 300 quilómetros de casa. Os meus filhos querem que eu vá para ao pé deles. Não posso, enquanto ele for vivo. Nem posso passar lá o Natal. Tenho medo que ele sonhe que estou lá. Se ele sonha, não há sossego. Alguma vez terei sossego?”.
Ana Cristina Pereira
a partir da reportagem em Portugal publicada no jornal Público, 13 de dezembro de 2009
Maria Kowalski
ilustração inédita, 2010
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