13 de maio de 2012

semana 20
As facas de Nima

















As facas estão na mão dela. Não as aperta como se temesse perdê-las. Segura-as apenas. Pertencem-lhe por herança. Tem sobre elas absoluto domínio. Pousam na palma da sua mão aberta. É a ela, e só a ela, que cabe a decisão de as largar. Tem o poder de ficar com as facas mas também de decidir entregá-las.
Nima veste a cor do sangue em terra vermelha. E com a mesma cor envolve as facas num tecido fininho, para as proteger. Sagrado como tudo o que foi escapando às mudanças da história. Persistindo. Resistindo. Ficando. São-lhe demasiado importantes. Uma extensão de si. O seu utensílio profissional. O seu ganha-pão. É como se um cirurgião entregasse o bisturi. 
A sua pele esconde os anos que por ela já passaram, mas Nima já deve andar na casa dos 70. Pelas suas facas já passaram muitas meninas. Que Nima ouviu gritar e chorar, que viu espernear e prostrar. Que fez sangrar por achar que isso as tornaria melhores mulheres. Decentes, como as mães e as avós antes delas. Sofridas como é de uso. Submissas como é suposto.
Mas passaram muitas meninas e muitos anos por aquelas facas – e as facas também se cansam. E também têm dúvidas e até mudam de opinião. Foi o que aconteceu às de Nima. Afinal, meninas morreram, meninas sofreram, meninas não foram mais iguais, perderam o brilho do olhar e a vontade de sorrir. Aqui, na Guiné, mas também no resto do mundo, que estas facas têm irmãs em várias tabancas.
Chegou, então, a hora da reforma. O som dos tambores aumenta de volume. Os músculos dos homens do “djidiu” retesam-se a cada batucada e as veias parecem querer saltar-lhes dos braços. As facas deixam-se embalar por Nima, que lhes dedica uma última dança. Sempre entre as mãos – como abdicar daquela presença tão constante que lhe assegurava um lugar especial na comunidade? Devagar, portanto, Nima vai-se despedindo delas, sussurrando-lhes ao ouvido.
Há muita gente a ver, que canta, dança, atira os braços ao ar, soletra palavras imperceptíveis. São testemunhas do exemplo de Nima. Da sua diferença. Outras vão seguir-lhe, lentamente. Muitas não. Muitas ainda farão de conta que sim, mas voltarão às facas. Porque a elas estão habituadas. Ou simplesmente porque precisam de comer.
Nima curva-se agora, facas nas mãos, como há pouco se curvavam aqueles que por ela passavam, reconhecendo-lhe o estatuto de conhecedora das facas. Afinal, as suas mãos marcaram mulheres para sempre. Cortaram-nas. A sangue frio e a fundo. Mas isso foi no passado de Nima. Que tem direito a um futuro diferente.

Sofia Branco
inédita, Guiné-Bissau, 2009

Adriano Gomes
fotografias inéditas, 2010

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