29 de julho de 2012

semana 31
Turbo


Tinha 15 anos. Conhecido como Turbo, a rua era a sua casa. Sobrevivia de pequenos biscates, como lavar carros e fazer recados aos moradores no quarteirão à volta do Hotel Mundial, no Largo Serpa Pinto, em Luanda.
Numa tarde de Janeiro de 1998, à saída do Hotel Mundial dou conta de burburinho na rua: o Turbo, algemado com as mãos atrás das costas, a chorar e rodeado de polícias procura defender-se da acusação de ter roubado um par de sapatos e o comando de uma parabólica. Aos gritos de “não fui eu, não fui eu”, os polícias respondem com agressões, pontapés e estaladas. Entretanto, uma carrinha da polícia de caixa aberta chega ao local e antes que consigam fazer subir o Turbo, este ensaia uma fuga.
Obviamente votada ao fracasso poucos metros depois. Um dos polícias alçou da espingarda a tiracolo e atingiu Turbo, por detrás, na face interior da perna esquerda.
Rapidamente levado para o Hospital Militar, onde é identificado, recebe os primeiros cuidados médicos e é recambiado para a esquadra na baixa de Luanda, junto à Sé.
Participado o caso à UNICEF, por ser menor, Turbo ainda chega a ser referenciado naquela esquadra, mas semanas depois, quando se intensificam as acções para o libertar a resposta vem seca e curta: “não temos aqui o registo de ninguém parecido”.

Eduardo Lobão
história inédita, 1998-2010

Maria Kowalski
ilustração inédita, 2010

22 de julho de 2012

semana 30
Nancy e os sem-nome


Quando conheci Nancy Gomez, ela era magra e usava óculos.
Tinha 50 anos, cinco filhos, catorze netos e todos viviam numa pequena casa com aspecto de obra inacabada. Lá dentro, havia uma escadaria de tijolo para quartos com grades nas janelas. O cimento, frio, era ainda o pano-cru que cobria paredes, chão, vidas.
O boné de pala, as palavras sem maquilhagem e o ar resoluto conferiam a Nancy uma autoridade natural. Nessa época, ela era líder reconhecida e mulher respeitada nos cerros de El Valle, as favelas de Caracas. Milhões anónimos num território de avessos, labirinto dentro de uma encruzilhada chamada Venezuela.
O dia de Nancy era de azáfamas e sobrevivências. Com perícia e crucifixos no retrovisor, conduzia jipes de aluguer, o transporte público desta cascata amontoada de gente, emparedada entre barracas, violências e estigmas. Casas, escolas e centros de saúde estavam em construção, como um país novo. E a tudo ela acudia, mobilizando vontades, desfazendo inércias e desconfianças.
Hugo Chávez era então o Deus imaculado dos esquecidos e miseráveis de Caracas. Em El Valle diziam-no portador de uma nova esperança e dos ensinamentos de Cristo e Bolívar, citados amiúde a partir de livrinhos que andavam de mão em mão. Ah!, e é claro: ele tinha sido o único presidente a visitar os humildes, a “chusma”, a olhá-la de igual para igual. Falava “sem precisar de trazer um dicionário na boca”. Por isso, o entendiam. Por isso, o seguiram. “Se ele é um ditador, é um ditador dos pobres”, dizia Nancy.
Passaram anos. Um novo-riquismo saiu às ruas, ostensivo, com tração às quatro rodas e duas pedras de gelo. Sem cuidar de sonhos em filas de espera. Nas curvas apertadas das políticas, dos imaginários e dos vidros fumados, Nancy talvez tenha acumulado angústias e desalentos.
De Caracas, porém, dizem-me que ela continua a tricotar milagres chiquitos e a viver desassossegada, voz e mão dos que sempre esperam alento e pão. Se dias piores vierem, tenho, pelo menos, uma certeza: a cada madrugada que a cidade dos sem-nome adormecer presépio de luzes e sombras, Nancy continuará a enganar a escuridão com um sorriso sem lamento. E dirá, como naquele tempo: “A noite fez-se para dormir. Se não houver luz, se não houver o que comer, sabemos, pelo menos, que amanhã o sol vai nascer de novo”.

Miguel Carvalho
texto inédito, 2010, a partir de elementos de reportagem publicada na revista Visão, em Janeiro de 2003

Lucília Monteiro
fotografia inédita, 2003

15 de julho de 2012

semana 29
Com os olhos na ponta dos dedos


“Eu gosto muito de ler, e quando vivia na Alameda ia de autocarro para Campo de Ourique para lá, normalmente entretido a ouvir um livro. Quando dava por mim, tinha passado a paragem e já estava em Chelas. Perdi-me vezes sem conta no percurso casa-trabalho, apesar de saber de cor o caminho para o número 95 da rua Francisco Metrass, no bairro de Campo de Ourique em Lisboa. Entre 30 a 40 mil pessoas com deficiência visual procuram, por ano, a nossa ajuda. Reparamos as bengalas de cegos e amblíopes. E temos a maior biblioteca de braille do país. Temos livros portugueses e estrangeiros, e qualquer pessoa, mesmo que não seja associada, pode visitar-nos. São mais de 40 mil, entre obras em papel e em formato digital. Os livros ajudam a passar o tempo. O que é que as pessoas cegas fazem enquanto estão em casa? Ora, esperam muitas vezes o dia inteiro pela família. E tanta coisa podiam fazer. Sentir-se-iam úteis e seriam o orgulho da família. Porque eu sinto o orgulho dos meus filhos quando lêem as conquistas da associação, as minhas conquistas no jornal. Quando os meus filhos metem a chave à porta eu sei exactamente como eles vêm, como eles estão. Vejo pelo modo como eles põem a chave na porta. Vejo pelo tom de voz. Vejo pela maneira de andar, pelos passos. Eu não preciso que eles falem”.


Vítor Graça, da Associação Promotora do Ensino para Cegos

Mariana Barbosa
a partir da reportagem publicada no suplemento iReportagem do jornal i, 30 de Abril de 2010

José Pedro Tomaz
fotografias publicadas no suplemento iReportagem do jornal i, 30 de Abril de
2010

8 de julho de 2012

Semana 28
Homem Grande


O “Homem garandi” veio buscar-me ao hotel. Eram horas de partir até Ilondé a 20 quilómetros de Bissau. Este “Homem garandi” era Carlos Robalo ou Neta Robalo. “Normalmente os guineenses têm mais do que um nome” respondia ele à questão levantada pelo meu olhar. Queria mostrar-me a escola dos seus sonhos e onde, desde 2004, cerca de duzentas crianças criam novos sonhos.
Na chegada à escola Boa Esperança, Neta Robalo parecia abrandar o passo como que saboreando a sua terra de memória, feita de terra vermelha, coberta por um mar imenso de cajueiros. Nesse dia havia um estranho silêncio. “Era dia de férias” explicou Neta Robalo. Nenhuma das salas de aula estava ocupada. “Conseguimos dinheiro para o depósito de água, para o painel solar, temos várias casas-de-banho, uma cantina, arranjámos subsídio para os professores não faltarem e até conseguimos envolver os pais neste processo... é esta a solução, sabes, a educação! O basquete permitiu-me sair daqui, abracei a profissão em Portugal e na Alemanha, mas aproveitei para aprender. É a única forma de se poder ter condições para mais tarde se poder fazer escolhas”. “E agora?” perguntei “ainda há muito que fazer, afinal ainda temos de criar um recinto desportivo” diz a rir, entrando numa das salas naquele andar arrastado de um jogador cansado, mas feliz porque este novo jogo à partida já estava ganho.
Agora percebem porque é que Neta Robalo é um Homem “garandi”...?!

Fernanda Almeida
história inédita, 2010

Rui Rasquinho
ilustração inédita, 2010

1 de julho de 2012

semana 27
A história de Abou


Os tesouros do Sul de Itália são os frutos da sua terra: o azeite, a fruta e os legumes. Mas quem cada vez mais trabalha nos campos não são os agricultores da Campânia, da Puglia ou da Calábria. As mãos e os braços que apanham a fruta e espremem as azeitonas são negras, vêm de África. Abou tem trinta anos. Vem da Costa do Marfim, mas a sua família é do Mali.
A guerra, a eterna instabilidade do seu país e a falta de perspectiva levaram-no, há dois anos, a fazer a difícil viagem para a Europa. Assim chegou a Rosarno, na Calábria, onde juntamente com milhares de outros africanos tem passado entre doze e catorze horas por dia a apanhar tangerinas, laranjas e azeitonas, ganhando, quando é bom, 25 euros por dia.
Depois, em Janeiro de 2010, algo aconteceu: os “escravos” revoltaram-se. Dois rapazes foram feridos com tiros de arma de fogo, provavelmente porque não quiseram aceitar as regras do “caporalato” (capataz), uma lei não escrita que explora o elo fraco do mercado. A revolta foi violenta: os africanos gritaram a sua raiva e os calabreses responderam com tiros de espingarda, com barras e carros lançados contra os imigrados: “Não queremos mais pretos aqui!” “As pessoas fugiam, choravam. A polícia disse para irmos embora”, conta Abou. Mas para onde? Abou morava numa fábrica abandonada com centenas de pessoas: dezenas e dezenas de tendas colocadas no hangar, sem luz, sem água, sem casas de banho.
Depois a fuga e a chegada a Roma. Também aqui a instalação é provisória: para os refugiados de Rosarno o único lugar possível é alguma paróquia ou centro social (ex fábricas ocupadas).
Aqui alguém dá aulas de italiano e ajuda para fazer os documentos. Mas as perspectivas são poucas e muitos pensam em voltar para baixo, para o Sul, onde pelo menos algum capataz emprega por uma jornada. Abou entretanto pediu o asilo político a Itália: “Depois de ter visto espingardas, guerra, cadáveres e crianças morrerem à fome, não tenho medo de mais nada, peço só uma vida normal”.

Stefania Mascetti
inédita, 2010

Ana Grave
ilustrações inéditas, 2010