29 de janeiro de 2012

semana 5
Omer vai cumprir o sonho de ser actriz































Em 2008, a israelita Omer Goldman estava numa prisão militar por se recusar a servir um “exército de ocupação”. Hoje, com 21 anos de idade, aguarda o ingresso na academia de artes Seminar Hakibbutzim College, em Telavive, para tentar realizar o sonho de ser actriz. Não tem sido fácil a vida da filha de Natalin Granot, especialista em Irão e ex-“número dois” da Mossad, considerada a “mais eficiente” agência de espionagem do mundo, que se demitiu, em 2007, quando o actual director, o implacável Meir Dagan, não cedeu o posto ao sucessordesignado.
Omer havia sido recrutada para o serviço militar obrigatório aos 18 anos, mas já no liceu decidira que não queria ir para a tropa. Seria uma refusenik. “Assim que deixei a escola, e antes de me inscrever na faculdade, dei aulas a crianças pobres num bairro de judeus etíopes”, contou-nos. “Quando me chamaram, entreguei uma declaração aos oficiais onde afirmava: ‘Recuso alistar-me nas Forças de Defesa de Israel [IDF, na sigla inglesa]. Não farei parte deste exército que, desnecessariamente, pratica actos de violência e viola os mais básicos direitos humanos’”.
A 23 de Setembro de 2008, sem ter sido julgada, foi cumprir 21 dias de detenção. Libertaram-na a 10 de Outubro, mas voltou para um segundo período, de apenas 14 dias porque ficou doente. Saiu novamente em liberdade, a 30 de Outubro. Estes ciclos iriam repetir-se mas o exército, face às pressões, acabou por ceder. Em Israel, o estatuto de objector de consciência não é reconhecido. As IDF são um “exército do povo”, quase mitológico. Não é possível recusar servi-lo por motivos políticos. Antes de ser aceite na Seminar Hakibbutzim, onde alguns professores aderiram ao movimento de boicote ao colonato de Ariel, Omer tentou primeiro inscrever-se na prestigiada Nissan Nativ School of Acting. Exigiram-lhe que explicasse por que não cumpriu o serviço militar. Ela escreveu no formulário: “Fuck off!”.
Para pagar as aulas e a casa onde vive sozinha (“sempre amei a minha independência”), Omer trabalha como empregada de balcão e mesa num bar que é também estação de rádio. “É preciso ganhar a vida”, justifica, lamentando que esta actividade profissional tenha reduzido a sua participação em manifestações contra a ocupação. Às sextas-feiras à noite, ela era presença assídua nos protestos em Sheikh Jarrah, bairro de Jerusalém Oriental de onde uma família palestiniana, que já havia sido expulsa de Jerusalém Ocidental, foi despejada para dar lugar a colonos judeus ultra-ortodoxos.
Um dia, num clube de Telavive, um rapaz interpelou-a: “És a puta que anda a dizer mal do nosso país?” Ela garante que não se importa com os insultos. Também circularam petições para lhe retirar a cidadania. Ela ri-se mas lamenta: “Este já não é um país para gente livre, vivemos um dos períodos mais obscuros. As pessoas estão cada vez mais nacionalistas. Não conseguem olhar para os nossos vizinhos como seres iguais”.

Margarida Santos Lopes
a partir de uma conversa telefónica em Setembro de 2010 e de uma entrevista publicada no jornal Público, em Novembro de 2008

Active Stills
fotografia publicada em activestills.org

22 de janeiro de 2012

semana 4
A música como resistência









Podia estar com a sua viola de arco numa orquestra, andar por França em concertos, ter segurança, conforto, uma carreira. Mas continua a viver entre campos de refugiados e cidades ocupadas da Cisjordânia, com grande obstinação. Aos 30 anos, Ramzi Aburedwan é uma daquelas raras pessoas que sabe porque faz o que faz.
“Atirar pedras é uma forma de dizer que não e fazer um concerto num ‘checkpoint’ ou no muro [que Israel construiu à volta dos territórios], é uma outra forma de dizer que não. Dar às crianças palestinianas a possibilidade de viver uma outra infância, que não quer dizer atirar pedras, também é uma forma de resistir. De dizer que nos querem fazer sentir mortos mas não conseguirão”.
Ramzi tinha oito anos quando a Primeira Intifada rebentou, e um amigo morreu a seu lado, atingido por soldados israelitas. Pegou instintivamente numa pedra, e essa imagem, captada por um fotógrafo, correu mundo. Tornou-se um líder infantil na intifada.
Aos 11, o pai foi morto e Ramzi passou a viver com os avós no campo de refugiados de Al Amari, perto de Ramallah. Distribuiu jornais, desenvencilhou-se. Até que um músico palestiniano residente na Jordânia lhe mostrou uma viola de arco. Ramzi avançou de professor em professor, de bolsa em bolsa, dos Estados Unidos a França. Estudou viola mas também “buzuk”, uma espécie de alaúde. Fundou o grupo Dalouna, com música tradicional e original. Organizou idas de músicos à Palestina, para “ateliers” e “workshops” com crianças. Tudo o que absorveu foi sendo aplicado nesta ideia: uma escola-centro cultural, a Al Kamandjâti, capaz de trazer as crianças para a música, mas também de ir ter com elas.
“Politicamente, não confio em ninguém. Só acredito nas crianças, em preparar uma nova geração, ajudá-las a saberem mais, a serem pacíficas”.
Desde que abriu, em 2005, a Al Kamandjâti abriu seis delegações pela Cisjordânia. Já soma mais de 500 estudantes, e envolveu milhares em acções. Todos os anos organiza a Festa da Música e Ramallah pára, com concertos em simultâneo. Para tudo isto, tem apoios palestinianos e estrangeiros, mas não um financiamento a longo prazo, e o projecto é para hoje, mas também para amanhã. Ramzi vai lá estar.
Sempre que virem este nome – Ramzi Aburedwan –, é da Palestina que ele vem e à Palestina voltará.

Alexandra Lucas Coelho
a partir de texto publicado em “Oriente Próximo”, Relógio D’Água, 2007
fotografia publicada em “Oriente Próximo”, Relógio D’Água, 2007

15 de janeiro de 2012

semana 3
As bonecas de Nur dez anos depois















Há dez anos que não sei nada de Nur. Só a vi uma vez. Não estivemos um único segundo a sós, mas falámos um com o outro. Olhos nos olhos. Olhos que nunca antes se tinham cruzado. Os dela eram castanhos, pareceu-me, que a luz não era muita naquela casa de paredes, chão e tecto e pouco mais para uma sala de aula. Apenas duas mesas, três ou quatro cadeiras. O improviso feito projecto de educação. E de militância, tal era o discurso do professor de Nur, naquele bairro surgido do campo de refugiados palestinianos em Khan Younis, no Sul da Faixa de Gaza.
Talvez Nur tenha crescido. Talvez tenha sobrevivido aos disparos do colonato ali do outro lado da vedação com arame farpado e electrificado, aos roquetes dos do seu lado, aos “checkpoints” de militares ansiosos por ir para casa para a família e com medo de nunca mais a verem. Talvez Nur tenha conseguido não ser mártir, talvez não tenha explodido em desespero revestido de crença num paraíso que Nur tenha sonhado a partir de um sagrado livro que não leu mas lho deram a beber como fonte de salvação.
Talvez Nur não tenha sido uma das mais de 1398 pessoas mortas, 358 crianças, quantas Nures, durante a ofensiva israelita no virar do ano 08 para o ano 09 de um século que muitos sonharam de paz. Talvez Nur não tenha morrido. Mas não arrisco dizer que não seja parte dos 80 por cento dos agregados familiares da faixa de Gaza que carecem de ajuda alimentar. Ou das 300 mil pessoas do território que vivem abaixo do limiar de pobreza.
Mas, vou sonhar mais alto do que os sonhos possíveis numa terra de pesadelos, talvez tenha conseguido estudar. E saído de Gaza. Terá agora dezassete anos. Na altura escrevi que seria uma criança linda em qualquer parte do mundo. Mas estava em Gaza. Na altura sorriu quando lhe disse que já era uma estrela, por ter aparecido numa reportagem da Al-Jazeera e outra da TV Educativa de Jerusalém. Dizia repetidamente “Odeio Israel, mas não odeio os judeus. Queremos a Paz”, perante o olhar triunfante do professor de inglês, Samir Ahmed. Mas os olhos brilharam com um brilho que nunca esqueci quando lhe perguntei aquilo que me interessava saber de uma criança de sete anos, a que é que gostava de brincar: “Gosto de brincar com as minhas bonecas que ficaram debaixo da casa destruída pelos buldozzers”!

Ricardo Alexandre
história inédita, 2010

António Jorge Gonçalves
ilustração inédita, 2010

8 de janeiro de 2012

semana 2
O maior desejo da Mayra










É no bairro de Enterramento, um bairro novo na periferia de Bissau, que vive a Mayra. Hoje, como sempre, ela olha com atenção as crianças que vão para a escola. Mayra diz que tem 13 anos de idade mas terá certamente 15. Ela vive com a mãe, já lá vão dois anos. Nem sempre foi assim: os pais separaram-se quando ela tinha cinco anos de idade. Pouco depois, o pai levou-a para a casa duma das suas três mulheres. Naquele dia, a Mayra não foi à escola, nem nos dias seguintes, até hoje. Assim nasceu uma suprema frustração e cresceu o seu maior desejo: ir à escola para estudar como todos os meninos. Mas o seu desejo não tem peso.
No bairro de Enterramento, enquanto os filhos da sua madrasta iam todos os dias para a escola, Mayra acordava com montes de tarefas para cumprir. Ela tinha que cuidar da casa e a seguir ia para a rua onde, no meio da confusão, vendia produtos variados. Voltar para casa antes da meia-noite era impensável. Nunca foi o cansaço que decidiu sobre a hora de voltar. Sempre foi a ordem da madrasta. Aos 10 anos, cansada, ela fugiu e foi ter com outra madrasta. Essa segunda mulher tinha filhos, que tambem iam à escola. Também nessa casa Mayra teve azar; para ela só sobrou o trabalho: tirar água do poço, lavar os pratos e a roupa, limpar o chão, ir ao mercado procurar peixe e legumes, cozinhar. Quando Mayra recusava trabalhar, recebia porrada. Ela sempre tentou pedir ajuda mas nunca encontrou apoio.
Aos 12 anos de idade Mayra decidiu ir ter com a mãe, que vivia nos Bijagós. Mas Mayra nunca conseguiu o dinheiro suficiente para ir ter com ela. Quando o pai morreu ela pôde voltar a estar de novo com a mãe, que veio a Bissau para assistir ao funeral. A mãe acabou por ficar e, sem perder tempo, meteu-se com outro homem. A Mayra sonhou de novo com a possibilidade de poder ir à escola. Mas a mãe e o novo padrasto não tinham planos para ela. Preguiçosos e alcoólicos, passavam dias a beber, sem procurar trabalho. O casal teve filhos mas nem por isso mudaram o rumo das suas vidas. É Mayra quem cuida dos meninos e que pede regularmente esmola aos vizinhos para conseguir comida. Mas nem assim ela teve um lugar seguro: um dia, o padrasto achou os meninos sujos e pediu explicações a Mayra. “Os filhos não são meus”, replicou ela. O padrasto zangou-se e expulsou-a de casa. Sem qualquer apoio, ela ficou durante dois meses na rua, até que a família duma amiga deu-lhe asilo e também à sua avó. Depois voltou para a casa da mãe. Hoje, quando as crianças passam na rua para ir à escola, Mayra olha para elas. Um dia ela há-de ser uma delas porque o seu sonho é simples de realizar.

Alain Corbel
texto e fotos inéditos, 2010

1 de janeiro de 2012

semana 1
Zafaran, 11 anos, na hora da segunda prece





Faz as abluções antes da segunda prece - cara, cabeça, mãos, pés - com água que escorre de um bule. Está agachado no chão poeirento da parte exterior do campo, onde se aglomeram a céu aberto 400 famílias (mais de duas mil pessoas) à espera de autorização para abandonarem a terra de ninguém e entrarem por fim em Kili Faizo.
- O que vais pedir hoje a Deus, Zafaran?
- Que perdoe os meus pecados e os pecados dos meus pais, irmãos e irmãs, familiares, e de todos os muçulmanos do Norte, do Sul, do Leste, e do Oeste.
- Quais são os teus pecados, Zafaran?
- Não sei.
- O que é que gostavas de pedir a Deus, Zafaran?
- Que pergunta tão estranha.
- Qual é o teu maior desejo?
- Não percebo.
- Imagina que podias pedir uma coisa e que ela te era concedida: um brinquedo, um carro, uma casa.
- Não percebo.
- Não tens um desejo, Zafaran?
- O que é desejo?


Adelino Gomes
a partir de reportagem no Afeganistão publicada no jornal Público, em Dezembro de 2001
Alex Gozblau
ilustração inédita, 2010