Há dez anos que não sei nada de Nur. Só a vi uma vez. Não estivemos um único segundo a sós, mas falámos um com o outro. Olhos nos olhos. Olhos que nunca antes se tinham cruzado. Os dela eram castanhos, pareceu-me, que a luz não era muita naquela casa de paredes, chão e tecto e pouco mais para uma sala de aula. Apenas duas mesas, três ou quatro cadeiras. O improviso feito projecto de educação. E de militância, tal era o discurso do professor de Nur, naquele bairro surgido do campo de refugiados palestinianos em Khan Younis, no Sul da Faixa de Gaza.
Talvez Nur tenha crescido. Talvez tenha sobrevivido aos disparos do colonato ali do outro lado da vedação com arame farpado e electrificado, aos roquetes dos do seu lado, aos “checkpoints” de militares ansiosos por ir para casa para a família e com medo de nunca mais a verem. Talvez Nur tenha conseguido não ser mártir, talvez não tenha explodido em desespero revestido de crença num paraíso que Nur tenha sonhado a partir de um sagrado livro que não leu mas lho deram a beber como fonte de salvação.
Talvez Nur não tenha sido uma das mais de 1398 pessoas mortas, 358 crianças, quantas Nures, durante a ofensiva israelita no virar do ano 08 para o ano 09 de um século que muitos sonharam de paz. Talvez Nur não tenha morrido. Mas não arrisco dizer que não seja parte dos 80 por cento dos agregados familiares da faixa de Gaza que carecem de ajuda alimentar. Ou das 300 mil pessoas do território que vivem abaixo do limiar de pobreza.
Mas, vou sonhar mais alto do que os sonhos possíveis numa terra de pesadelos, talvez tenha conseguido estudar. E saído de Gaza. Terá agora dezassete anos. Na altura escrevi que seria uma criança linda em qualquer parte do mundo. Mas estava em Gaza. Na altura sorriu quando lhe disse que já era uma estrela, por ter aparecido numa reportagem da Al-Jazeera e outra da TV Educativa de Jerusalém. Dizia repetidamente “Odeio Israel, mas não odeio os judeus. Queremos a Paz”, perante o olhar triunfante do professor de inglês, Samir Ahmed. Mas os olhos brilharam com um brilho que nunca esqueci quando lhe perguntei aquilo que me interessava saber de uma criança de sete anos, a que é que gostava de brincar: “Gosto de brincar com as minhas bonecas que ficaram debaixo da casa destruída pelos buldozzers”!
Ricardo Alexandre
história inédita, 2010
António Jorge Gonçalves
ilustração inédita, 2010
Sem comentários:
Enviar um comentário