Numa esquina do caótico cruzamento do bairro de Caracol com a estrada de Bor, nos subúrbios próximos da capital guineense, Filomena Quessin, uma rapariga da etnia balanta, a mais numerosa da Guiné-Bissau, improvisou o seu modesto negócio. Estuda de manhã e à tarde vende donetes, saquinhos de água fresca e sorvetes de “cabaceira”* a quem procura algo para atenuar o sufocante calor da época das chuvas. Filomena leva esta vida há pouco mais de um ano, desde que veio de Bessassema de Baixo, uma aldeola da remota região meridional de Quínara. Deixou Bessassema, onde não há luz eléctrica nem água canalizada, para escapar ao “beguima uiné lanté”, a prática ancestral de dar as meninas em casamento contra a sua vontade. Quando viu os familiares a prepararem a farinha de milho, que antecede as cerimónias nupciais, aproveitou a escuridão e abandonou a casa, na companhia de uma conterrânea, numa fuga a um destino comum. Aceitar o marido imposto pelo pai equivalia a sujeitar-se à maternidade precoce, a ficar presa às lides domésticas e a renunciar à escola. Caso contrário, teria de sofrer a maldição paterna e a separação dos seus. Era quase uma questão de vida ou morte. Protestante convicta e determinada a instruir-se, optou pela liberdade e refugiou-se nas instalações da Igreja Evangélica em Bissau, porto de abrigo de cerca de duas dezenas de jovens em idêntica situação. Dois anos depois, o progenitor, que jurou matá-la pela afronta, acabou por perdoá-la e reconciliaram-se. Mas a reaproximação não foi fácil. Só foi possível depois do pai ter feito uma cerimónia sagrada, que na crença animista local, tem o poder de anular um sortilégio lançado contra a filha, e que podia virar-se contra si, por ter faltado à palavra dada.
*Fruto de uma árvore silvestre, conhecida também por bao bao. Em Angola é chamada imbondeiro
Fernando Jorge
texto inédito, 2010
Marta Jorge
fotografia inédita, 2010
estou muito contente com a sua decisão.Isso deve servir de vários exemplos para muitas raparigas nessas situações.
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