5 de agosto de 2012

semana 32
Uma casa chamada regresso


No Huambo, “as crianças de rua sofrem o que sofrem porque sofrem dos outros”. Sónia Ferreira, a jovem responsável da Okutiuka, sabe que “os miúdos sofrem muito”. Sofrem a violência da polícia e dos militares, sofrem a crueldade dos adultos, sofrem a fome, o frio, a chuva, a falta de afecto e de educação, sofrem por vezes a exploração sexual na primeira adolescência.
Há centenas de meninos de rua espalhados pela cidade, organizados em comunidades e gangs. A Okutiuka tornou-se familiar entre eles. A Okutiuka nasceu na província de Benguela em Julho de 1995. O centro Okutiuka do Huambo presta assistência escolar, familiar, médica e profissional às crianças de rua. No Huambo já moraram três guerras.
Não há muita roupa na Okutiuka, depois dos colchões é o que mais falta. A mesma camisa, o mesmo vestido, vai passando de menino em menino. Um retrato não é todos os dias. Um pente também não.
— Não limparam o cabelo!
O fotógrafo compõe os colarinhos e os queixos – há sessão de retratos nesta manhã de céu azul.
— Ó: galinha do mato deu ovo!
Senta-se o Alemão.
Começaram a chamar-lhe assim porque esteve um ano na Alemanha em tratamento médico.
O menino tem uma ferida velha na perna, que apodrece e deita um cheiro nauseabundo.
Senta-se Mingo, que estava a rachar lenha a machado.
Senta-se a pequena Lurdes, que pôs um vestido amarelo com bolas pretas, um vestido que sorri por ela.
Senta-se Zangulo, que tem quatro tambores deitados ao sol, para que eles espreguicem a pele antes do ensaio de Carnaval.
Senta-se Martinho,
senta-se Paulo,
senta-se um rapaz paralisado pela pólio. Ajoelha-se no chão e sobe para o balde. Antes da Okutiuka esmolava pela cidade — às costas dos outros meninos. Clic!
Tita e Henrique não compareceram à sessão de retratos porque estão ocupados com o resto da sua vida: casaram-se e andam em mudanças. Têm um filho de quatro meses. Falta apenas dois dias para se instalarem na pequena casa que a Okutiuka comprou para eles junto à fábrica de leite.
Tita tem dezassete anos. Foi prostituta aos catorze.
Okutiuka é uma palavra umbundo. Significa “regressar”.
Sónia ainda não tem filhos. “Tenho estes…”
Duzentas crianças olham a câmara
sentadas
no fundo de um balde
no reverso de um país
no colo de uma mulher
— “Sónia, quero ficar aqui” —
numa fábrica sem leite.

Pedro Rosa Mendes
a partir da reportagem publicada em “Ilhas de Fogo”, ACEP, 2002

Alain Corbel
ilustração inédita, 2002

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