– Fui levado por eles…
depois mandaram-me pedir nas ruas. Fui, mas não consegui dinheiro. Aruna só foi
menino até aos seis anos; agora é talibé, de taliban.
Seguro-lhe a mão fria mas
suada, a mesma que tantas vezes usou para se proteger.
– Bateram-me muito e fiquei
inconsciente. Quando acordei, fugi e fui pedir ajuda.
Os olhos estão agora
cravados na linha que desenhou com o pé na terra vermelha de Bafatá. É como se
a vergonha fosse sua. Talvez porque ele acha tudo em nada; talvez porque eu não
acho nada em tudo. E se as esperas e desejos de uma criança não se estendem
para além de cinco minutos, Aruna esperou quatro anos.
São conhecidos como os
“Meninos Talibés”. Crianças levadas das tabancas (aldeias da Guiné-Bissau),
para estudarem nas Madrassas, as escolas corânicas, mas que acabam nas redes de
tráfico. Levadas para outros países, aí são sujeitas a trabalhos forçados, à
mendicidade e à exploração sexual.
Malan é um muçulmano
guineense que luta contra os falsos mestres corânicos. Com a ONG que fundou, a
“SOS – Crianças Talibé”, já recuperou mil e duzentas crianças. É ele quem me leva
numa viagem impressionante até à aldeia de Maimuna, Ramatulai e Tulai. Têm
agora entre onze e catorze anos e estiveram fechadas num quarto durante oito
anos sujeitas a violações constantes. Só foram libertadas porque estão grávidas
e perderam o valor comercial. O Régulo autoriza-me a entrevistá-las.
— Maimuna, não tenhas medo,
conta-me o que te fizeram.
— Levaram-me com eles para
o Senegal. Queria aprender a ler e a escrever. Ele perguntou-me se tinha mais
alguma amiga que também quisesse estudar. Disse-lhe que sim.
— Ramatulai, o que te
aconteceu lá no Senegal?
— Levaram-nos e fomos
fechadas num quarto. Íamos apenas para aprender a ler…
— E tu, Tulai, o que sentes
agora?
— Feliz, mas quero aprender
a ler.
O desejo de Tulai é o mesmo
de Ramatulai e de Maimuna, mas não serão obedecidos. As famílias fogem da
vergonha e vão sujeitá-las a casamentos forçados nos próximos meses.
Estou a preparar as malas
para voltar a Lisboa quando sinto que um carro pára à porta da delegação da RTP
África, em Bissau, e alguém grita:
— Conseguimos! Conseguimos
duas vitórias!
É o professor muçulmano que
corre para mim de braços abertos.
— O Aruna encontrou a
família graças à tua reportagem! Quanto às meninas, uma ONG internacional garantiu
alimentação e cuidados médicos para elas até darem à luz.
Malan levanta as mãos ao
céu e agradece com sonoros “Allahu akbar!”, Deus é grande.
Mais tarde quis saber o que
lhes acontecera.
Aruna vive actualmente com
os pais nos arredores de Bissau; Ramatulai teve uma menina; Maimuna abortou ao
quinto mês e Tulai não se adaptou e fugiu para o Senegal. Talvez para evitar o
casamento e aprender a ler. Ninguém mais a viu.
Actualmente há mais de cem
mil crianças da África Ocidental ainda nas mãos dos traficantes.
Luís Castro
a partir de reportagem para a RTP, na Guiné-Bissau, 2008
ilustração a partir de frame
da reportagem para a RTP, 2010
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