No mundo de hoje, sermos ou não parte dos que acedem a um conjunto largo de direitos não pode ser deixado a um acaso geográfico. Também não pode ser encarado como natural, fruto da história passada e de uma inevitabilidade de futuro. Como se uns tivessem direitos e outros necessidades: uns do lado errado, uma geografia da privação, com vestígios dispersos do que poderia ser; outros, num lado confortável, às vezes com dificuldade de se relativizar, em face do sofrimento dos outros. E muros, novos velhos muros.
No entanto, um mundo, único, de que somos parte e em que cada vez mais nos influenciamos mutuamente. E pessoas e histórias – a Eugénia, redeira de Peniche, que conquistou o direito a descontar, ou a Lydia, tchetchena, que está convicta de que o medo é um vírus, que há que lutar contra o vírus do medo. Muitas outras pessoas e histórias, separadas por geografias (afinal não é uma questão de geografia), unidas em vidas de margens, muitas unidas também na inconformidade. Porque, como dizia o autor da primeira das 52 histórias, muitos percursos individuais passaram a colectivos, muitas das realidades de hoje já foram utopias antes.
O mundo de que somos parte. Diz-nos respeito, individual e colectivamente, o presente e o futuro dos outros. Significa, por exemplo, enfrentar situações em que o simples olhar pode violentar, ou realidades que parece que se fecham à compreensão racional e afectiva. Procurar ir mais além, sem pisar o risco da dignidade dos outros. E também criar espaços de voz para aqueles precursores, que teimosamente realizam direitos, constroem hoje as suas utopias.
Sem pretensões, procuremos uma das possíveis implicações de uma cidadania global: por exemplo, todos os que têm o privilégio de contacto directo com outros e noutros lugares, têm hoje uma espécie de imperativo moral de universalismo – lembremos a palavra que caiu em desuso, o cosmopolitismo.
Cruzam-se aqui missões, assim – do jornalismo, da comunicação sobre o outro, de organizações múltiplas da cidadania, local, global. E cruzam-se também responsabilidades, que vão para além da missão específica de cada um. Por isso esta proposta feita a dezenas de jornalistas, fotógrafos, ilustradores, de juntarmos 52 histórias recolhidas ao longo de anos, às vezes nunca contadas.
Porque numa época em que se exclui ou se mata, até em afirmação de pretensas identidades, todos aqueles que têm o privilégio do contacto directo têm a capacidade e a responsabilidade de serem um misto de intérpretes / intermediários, que nos vão ajudar, individual ou colectivamente, a pôr na pele de alguém. E assim participam na construção das imagens que faremos desse alguém e da relação que com ele vamos estabelecer.
É neste conceito de cidadania e responsabilidade global que assenta este projecto, onde, tal como noutros anteriormente concretizados, se têm cruzado preocupações de (nos) aproximar o mundo, realidades em toda a sua espessura, num compromisso de aprendizagem com muitos outros – e de reconhecimento mútuo.
Que estes fragmentos possam ser os desenhos do tapete persa, de que falava Kapuscinski: um quadro em toda a sua delicadeza, diversidade e complexidade, em que cada palavra, cada traço, cada sombra não esteja ali por acaso. Que não sejam lidos como fragmentos, reduzindo o mundo àqueles instantes, mas sim como a transmissão de múltiplos olhares e circunstâncias. Que sejam escutados como expressões de narrativas inteligentes, curiosas, responsáveis, feitas de testemunhos, que nos desafiam à compreensão do mundo, do nosso papel e lugar.
E que, como acredita a poetisa finlandesa Tua Forsström, no final aquele que volta seja sempre outra pessoa.
Fátima Proença, ACEP